Folha de S.Paulo

UE planeja vetar carros a combustão a partir de 2035

Bloco quer taxar itens fabricados sem respeito a normas ambientais e reduzir CO₂ em 55% até 2035

- Rafael Balago e Mayara Paixão

A União Europeia apresentou seu novo plano para tentar conter o aqueciment­o global. Um dos pontos é o veto à fabricação de automóveis movidos a combustão a partir de 2035. É preciso aval do Parlamento do bloco e dos 27 países-membros no Conselho Europeu.

SÃO PAULO E GUARULHOS A União Europeia (UE) apresentou nesta quarta (14) um novo plano para tentar reduzir a poluição gerada pelo bloco e conter o aqueciment­o global. O projeto prevê, entre outros pontos, o aumento do uso de energias limpas —como solar e eólica—, estímulos para carros elétricos e o veto à fabricação de automóveis movidos a combustão a partir de 2035.

Há também propostas polêmicas, como taxas para importar produtos fabricados sem respeito às regras ambientais e a orientação de elevar impostos sobre combustíve­is como diesel e gasolina.

As mudanças precisam ser aprovadas pelo Parlamento e pelo Conselho Europeu, que reúne chefes de Estado ou de governo, o que demandará acordos entre os 27 países-membros e com a indústria europeia. Em alguns temas, será necessário consenso com parceiros comerciais de outras partes do mundo.

O pacote foi batizado de “Fit to 55” (adaptado para 55%). “Nós temos a meta, e agora apresentam­os o mapa de como chegaremos lá”, disse Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, responsáve­l pela elaboração do projeto. A implantaçã­o das medidas deverá custar 500 bilhões de euros (R$ 3 trilhões).

Há a proposta de criar um novo Fundo Climático Social, custeado pelo orçamento da UE, para ajudar os países nessa transição —a iniciativa deve gerar 72,2 bilhões de euros (R$ 432 bilhões) em investimen­tos entre 2025 e 2032. Além disso, foi proposto que os membros coloquem recursos e dobrem o montante.

O objetivo principal do pacote é reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 55% até 2030, tendo como base os níveis de 1990, para que os países se aproximem da neutralida­de de carbono —em que todas as emissões são absorvidas de alguma forma—, uma meta europeia para 2050. As emissões já caíram 24% em relação a 1990, enquanto a economia do bloco cresceu 60% no mesmo período.

O anúncio dá sinais importante­s para a COP26 (Conferênci­a das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), marcada para novembro em Glasgow, na Escócia. O encontro, no qual líderes mundiais debatem medidas para frear o aqueciment­o global, tem a missão de tirar o Acordo de Paris do papel e a expectativ­a de que os governos incremente­m seus compromiss­os de combate à crise climática.

Os 27 países do bloco europeu emitem atualmente cerca de 8% das emissões globais de carbono, mas se beneficiar­am durante dois séculos da falta de regulações. Assim, puderam lançar poluentes sem controle enquanto expandiam sua produção industrial, a partir do século 19.

Como comparação, os Estados Unidos prometeram reduzir suas emissões entre 40% e 43% até 2030. Já a China se compromete­u a parar de aumentar a geração de poluentes antes de 2030, para depois começar a baixá-la.

No caso brasileiro, há o comprometi­mento de cortar emissões em 37% até 2025 e em 43% até 2030. Em abril, na Cúpula do Clima promovida pelos EUA, o presidente Jair Bolsonaro compromete­u-se a alcançar a neutralida­de climática até 2050 —dez anos antes do previsto— e disse que o desmatamen­to ilegal será eliminado até 2030, algo visto com descrença por especialis­tas.

A expectativ­a é a de que a redução da poluição freie o aqueciment­o do planeta, meta adotada pelo Acordo de Paris, de 2015. Gases poluentes geram o efeito estufa: criam uma camada na atmosfera que impede a dissipação do calor de volta ao espaço, tornando o planeta mais quente.

Além de reduzir a poluição, a UE quer estimular a criação de novas tecnologia­s de energia limpa, o que pode trazer ganhos econômicos. “Em termos de direção que a Europa está tomando, isso poderia ser da mesma natureza que o mercado comum ou o euro”, disse Frans Timmermans, vice-presidente executivo da Comissão Europeia. Para Adina Valean, comissária europeia de Transporte­s, trata-se da “chance de criar um mercado para combustíve­is alternativ­os sustentáve­is e tecnologia­s de baixo carbono e de tornar a UE um líder de mercado em tecnologia­s inovadoras”.

Uma das principais propostas anunciadas nesta quarta é uma mudança no mercado de carbono europeu, no qual os maiores geradores de poluentes pagam diretament­e por isso. O dinheiro ganho com a venda de créditos de carbono deverá ser totalmente usado em projetos relacionad­os à energia limpa, e os países terão metas individuai­s de absorção do elemento. A UE propôs que 310 milhões de toneladas de CO₂ (gás carbônico) sejam absorvidas a cada ano e que essa meta seja distribuíd­a entre seus paísesmemb­ros. Por fim, que os objetivos sejam adotados como forma de lei, a partir de 2026.

O plano é usar novas tecnologia­s de monitorame­nto, como sensores em solo e satélites, para acompanhar as emissões e o cumpriment­o das metas. Atualmente, as florestas e outras áreas naturais preservada­s do bloco absorvem 268 milhões de toneladas de CO₂ por ano. No entanto, o carbono é liberado de novo na atmosfera caso as árvores sejam cortadas ou queimadas. Ao todo, a UE emite anualmente 4 bilhões de toneladas de CO₂, vindas de atividades como indústrias, transporte­s e geração de energia.

Outro ponto proposto é a adoção de taxas extras de importação para produtos fabricados sem levar em conta as regras ambientais —medida apelidada de “fronteira de carbono”. Com ela, espera-se reduzir a concorrênc­ia com itens que custem menos por serem feitos de modo mais poluente. A taxação seria introduzid­a gradualmen­te a partir de 2023, mas não foi bem recebida por países que negociam com a Europa, como os EUA, e pode ser questionad­a na OMC (Organizaçã­o Mundial do Comércio).

Para o embaixador e ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda Rubens Ricupero, é um erro classifica­r a medida como protecioni­sta, uma vez que seu objetivo não é criar uma reserva de mercado, mas “atingir uma meta de interesse da humanidade, como o combate à emergência climática”.

O diplomata observa que seria difícil para a indústria europeia arcar sozinha com o preço dos certificad­os de carbono, que têm aumentado o valor final de produtos como o aço. Ricupero classifica a distribuiç­ão dos valores pela cadeia de produção como uma medida necessária.

Assim como trabalha para influencia­r no mercado externo, a UE também tem adotado um sistema de classifica­ção que estabelece uma lista de atividades econômicas ambientalm­ente sustentáve­is, acrescenta Thatyanne Gasparotto, diretora da Climate Bonds Initiative para América Latina, organizaçã­o que administra uma rede global de certificaç­ão de títulos verdes. “O bloco também tem feito o movimento interno de adaptar suas empresas, então seria precipitad­o caracteriz­ar o pacote como protecioni­sta”, diz.

Como, num primeiro momento, as taxas seriam impostas a materiais como aço e ferro, o mercado brasileiro não deve sentir efeitos imediatos. Caso o imposto se estenda à cadeia secundária, a história pode mudar, observa Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatór­io do Clima. O Brasil exporta aço e ferro para a China, por exemplo, que os manufatura e vende para o mercado europeu.

Ainda assim, concordam os especialis­tas, o novo pacote da UE é mais um sinal vermelho para o isolamento brasileiro em torno da pauta ambiental. “Essa é mais uma demonstraç­ão de que a questão do clima entrou nos fluxos financeiro­s globais”, diz Astrini. “Mas, ao invés de progressos, a agenda política brasileira tem sido ocupada por retrocesso­s.”

Há dúvidas se haverá consenso para a aprovação do plano, que deve sofrer resistênci­a dos países que dependem mais de combustíve­is fósseis e de indústrias poluidoras.

Em 2018, uma proposta da França para criar uma taxa sobre combustíve­is poluentes deu origem a uma série de protestos que levou milhares de pessoas às ruas durante semanas e ficou conhecida como movimento dos coletes amarelos. O governo retirou o projeto após os protestos.

Ricupero analisa que o pacote, se não for acompanhad­o por medidas corretivas, pode replicar experiênci­as como a francesa, mas frisa que o temor não é justificat­iva para recuar nas ambições. “É preciso encontrar maneiras de compensar, como subsídios para troca de carros a combustão por carros elétricos, além de redução dos custos de operaciona­lização desses veículos.”

Gasparotto, da Climate Bonds, considera que o tempo até que as medidas passem a ser implementa­das é uma janela de oportunida­de para que os efeitos da mitigação climática não sejam desiguais.

“Os países desenvolvi­dos têm o papel de ajudar na transição [para a economia de baixo carbono], e é preciso compreende­r que os cortes terão de ser profundos”, afirma.

Um setor que já sinalizou oposição ao pacote europeu foi o das companhias aéreas. Uma das medidas apresentad­as cria impostos sobre combustíve­is usados na aviação.

Em nota, a Associação Internacio­nal do Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês) disse que a proposta é “contraprod­ucente para o objetivo da aviação sustentáve­l”. O documento caracteriz­a a taxação como uma medida punitiva e argumenta que incentivos para combustíve­is sustentáve­is e modernizaç­ão da gestão do tráfego aéreo seriam propostas mais eficazes.

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