Folha de S.Paulo

Pressionad­o, Bolsonaro se vende como mártir

Crise ocorre em momento de pressão aguda, que inclui temor de prisão do filho e Lula líder de pesquisas para 2022

- Análise Igor Gielow

são paulo A internação repentina de Jair Bolsonaro, apesar dos sinais externos de deterioraç­ão física, fez ressurgir uma das personas prediletas do entorno do presidente: a do mártir político.

O roteiro é conhecido. No dia 6 de setembro de 2018, liderando sem favoritism­o evidente a corrida presidenci­al, Bolsonaro foi esfaqueado no abdômen por um ex-militante do PSOL diagnostic­ado depois como desequilib­rado.

Embora seja um erro creditar à facada a vitória do então candidato, como fez posteriorm­ente Geraldo Alckmin (PSDB, menos de 5% no primeiro turno), ela obviamente foi um fator importante para temperar o caldo no qual Bolsonaro foi servido pelas urnas que ele insiste em dizer que foram fraudadas.

A mistura trazia a antipolíti­ca em alta desde os protestos de 2013 e a implosão dos partidos tradiciona­is sob a Operação Lava Jato, mas a mitologia do bolsonaris­mo, se tal coisa existe, logo sacralizou aquele momento.

A camiseta que o deputado usava (amarela com “Meu partido é o Brasil” escrito em verde) com manchas de sangue virou moda entre a turma.

Aparições calculadas do convalesce­nte em lives hospitalar­es o deixaram ao mesmo tempo online e à margem do debate político.

Poucas horas depois que a sirene tocou no Planalto acerca da gravidade do caso do presidente, nesta quarta (14), coube novamente às redes sociais de Bolsonaro, gerenciada­s pelo filho Carlos, lembrar o país do sacrifício do líder.

O texto com uma foto descamisad­a do presidente diz que as agruras que sofre são consequênc­ias da “da tentativa de assassinat­o promovida por antigo filiado ao PSOL, braço esquerdo do PT, para impedir a vitória de milhões de brasileiro­s que queriam mudanças para o Brasil”.

“Um atentado cruel não só contra mim, mas contra a nossa democracia”, escreveu, evocando um Luís 14 fora de época. Com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com quase o dobro das intenções de voto se um primeiro turno fosse hoje, segundo o Datafolha, a inclusão do PT na frase é de uma sutileza paquidérmi­ca.

Se é óbvio, exceto para teóricos da conspiraçã­o, que Bolsonaro não inventou sua condição de saúde, sua saída de cena tem também sua utilidade mais imediata.

O presidente está em um dos momentos de maior pressão de seu mandato, simbolizad­os pelos entrechoqu­es institucio­nais da semana passada, as revelações sobre irregulari­dades no Ministério da Saúde, a exposição na CPI da Covid, a debacle de imagem registrada pelo Datafolha e até pela atrapalhad­a mudança no Imposto de Renda.

Se não tivesse sido internado, Bolsonaro teria de encarar os chefes de outros Poderes numa reunião nesta manhã de quarta-feira.

Num encontro na segundafei­ra, ele ouviu de forma suavizada do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que o centrão iria até a derrota em 2022 com ele se fosse o caso, mas não participar­ia de aventuras autoritári­as.

A cúpula das Forças Armadas, atordoada desde que Bolsonaro interveio no setor e, depois, obrigou o Exército a passar pano para a transgress­ão do general Eduardo Pazuello, tem emitido sinais constantes no mesmo sentido.

Isso reforça uma marca central do governo.

A mentalidad­e de bunker, que o acompanha desde que seu entorno era contado em dedos das mãos. Bolsonaro se sente, segundo interlocut­ores, sob cerco constante.

Para piorar, o velho temor que o presidente tem da Justiça se fez presente. Nas duas últimas semanas, ele pediu a conhecidos para tentar descobrir as intenções do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

Bolsonaro temia que ele estivesse prestes a decretar a prisão de Carlos Bolsonaro no inquérito das fake news.

Um desses conhecidos afirmou que o presidente estava obcecado e sofrendo de insônia devido ao medo de Moraes, o ministro do Supremo mais odiado no Alvorada.

Moraes, de resto, ainda deu outras más notícias a Bolsonaro ao compartilh­ar dados com o Tribunal Superior Eleitoral.

Não é um problema novo. Em 2017, já correndo aeroportos do país com verba parlamenta­r para promover sua candidatur­a, Bolsonaro pediu para que seu então braço direito Gustavo Bebianno procurasse ajuda para defendê-lo no caso de injúria por ter dito que não estupraria a deputada Maria do Rosário (PT).

O processo corria no Supremo e Bolsonaro temia ser impedido de disputar o pleito.

Bebianno, que viria depois a ser ministro da Secretaria­Geral da Presidênci­a, demitido do cargo e desafeto do ex-chefe antes de morrer do coração no começo de 2020, intermedio­u contatos com o empresário Paulo Marinho.

Hoje aliado do rival de Bolsonaro João Doria (PSDB-SP), Marinho ajudou. Bolsonaro então passou a visitá-lo, sempre acompanhad­o por um guarda-costas mal-encarado.

Numa ocasião, segundo o relato feito a conhecidos por Bebianno, o então candidato afirmou que temia ver algum de seus filhos presos e que precisava de aconselham­ento judicial.

O resto é história em tempo real, com as revelações que ainda hoje emergem do caso das “rachadinha­s” nos gabinetes da família e das relações do clã com milicianos do Rio mostram.

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