Entenda a intensificação golpista de Bolsonaro e suas consequências
Especialistas veem banalização nas ameaças sem reação à altura dos Poderes
Apesar de ser conhecido o modus operandi do presidente Jair Bolsonaro, que radicaliza seu discurso quando sob pressão, suas repetidas ameaças à realização das eleições de 2022 têm gerado cada vez mais preocupação de uma tentativa de golpe. Especialistas em direito e ciências sociais consideram negativa a banalização deste tipo de discurso golpista sem que haja uma reação à altura por parte das demais instituições democráticas. Há incerteza se Bolsonaro teria ou não apoio para ser bem-sucedido em uma tentativa de se manter no poder ao arrepio da lei. Por outro lado, é cada vez mais presente a avaliação de que é preciso levar a sério esse risco.
Quais falas recentes subiram a temperatura da crise?
Pressionado pela CPI da Covid, pelas ruas e por pesquisas que mostram aumento de sua reprovação no Planalto e derrota eleitoral em 2022, Bolsonaro subiu a aposta e intensificou seu discurso golpista.
Na última sexta-feira (9), além de atacar diretamente o presidente do TSE, a quem chamou de “idiota” e “imbecil”, disse que a fraude está na corte eleitoral e ameaçou que poderia não haver eleições em 2022.
“Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar, no voto auditável e confiável. Dessa forma [atual], corremos o risco de não termos eleição no ano que vem.”
No dia anterior, já havia feito uma ameaça semelhante: “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”.
Diretor da Faculdade de Direito da USP e professor de direito do Estado, Floriano de Azevedo Marques Neto afirma que a frase não pode ser tolerada.
“Uma fala como essa é absolutamente inaceitável vinda de um chefe de um dos Poderes, que jura à Constituição e jura, portanto, assegurar a permanência do Estado de Direito. É uma declaração sem precedentes, tanto do ponto de vista da sua inconsistência, quanto da sua gravidade”, diz.
Falas desacreditando o sistema eleitoral já estavam na retórica do presidente desde 2018, quando dizia ter sido eleito no 1º turno, o que repetiria outras vezes, sem nunca apresentar provas. Em janeiro deste ano, afirmou que, sem voto impresso, o Brasil poderia viver, em 2022, algo pior que os Estados Unidos
—onde apoiadores insuflados por Trump invadiram o Congresso.
Qual é a discussão atual sobre o voto impresso?
Em maio, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), instalou uma comissão especial para debater uma proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre o tema.
Na prática, não se trata do voto impresso diretamente, mas de comprovante do voto dado na urna eletrônica com o qual o eleitor não poderia ter contato. O comprovante seria uma auditoria extra (urnas eletrônicas já são auditadas em todas as eleições).
Independentemente do mérito da proposta, implementá-la em 100% das urnas até as eleições de 2022 seria difícil, devido à complexidade da tarefa. E é improvável que a PEC avance no Congresso.
No contexto atual e com as diferentes medidas de auditoria da urna eletrônica, além da inexistência de indícios de fraudes, especialistas veem a discussão neste momento como meio de jogar combustível na movimentação golpista de Bolsonaro.
O presidente aponta a medida como única forma de haver o que chama de eleições limpas no país e denuncia fraudes em eleições anteriores.
Mas não utiliza os meios institucionais para questionar as eleições, seja apresentando as supostas provas que afirma ter ou pedindo auditoria.
Qual o histórico de falas de Bolsonaro sobre golpe e democracia?
Não é de hoje que ele flerta com o golpismo ou faz declarações contrárias à democracia. Como governante, ele mantém este tipo de discurso.
“Alguns acham que eu posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo. E apesar de tudo eu represento a democracia no Brasil”, afirmou em uma formatura de cadetes em fevereiro deste ano.
Em 2020, participou de manifestações que defendiam a intervenção militar.
O então chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, deu entrevista à revista Veja negando a possibilidade de um golpe, mas dizendo para não “esticar a corda”.
Em entrevista de 1999 ,quando ainda era deputado, Bolsonaro disse expressamente que, se fosse presidente, fecharia o Congresso.
“Não há menor dúvida, daria golpe no mesmo dia! Não funciona! E tenho certeza de que pelo menos 90% da população ia fazer festa, ia bater palma, porque não funciona”, afirmou.
Quais outros elementos têm acendido um alerta?
Um questionamento central e que já vinha sendo feito é o de se as Forças Armadas dariam sustentação a eventual tentativa de golpe de Bolsonaro.
Se a avaliação geral vinha sendo de que elas não ultrapassariam tal linha —mesmo fortemente presentes na composição do governo— a nota emitida contra o presidente da CPI pelos comandantes das três Forças e pelo ministro da Defesa, seguida pela entrevista do comandante da Aeronáutica ao jornal O Globo foram vistas como ameaças.
Para o presidente da ABED (Associação Brasileira de Estudos de Defesa) e professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Eduardo Munhoz Svartman, o episódio é bastante grave.
“Não é admissível numa democracia que o ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas emitam ameaças dessa natureza. Em outros países eles seriam exonerados imediatamente”.
O tom crítico da nota à CPI, mas sem menção às suspeitas de corrupção em negociações de vacinas envolvendo militares, chama atenção por si só, mas ganha outros tons no contexto em que os autores assumiram seus postos.
Em março, em atitude inédita, os então comandantes das Forças Armadas pediram renúncia conjunta, um dia depois de Bolsonaro demitir o general Fernando Azevedo do posto de ministro da Defesa.
A saída teria ocorrido por Azevedo se contrapor à pressão de Bolsonaro, que queria apoio das Forças, até em relação a medidas de governadores no combate à pandemia.
Quais ameaças de Bolsonaro envolvem a pandemia?
Ele diversas vezes fez discursos ameaçando baixar um decreto e inclusive mencionando estado de sítio, mesmo que isso não comporte comparação com as medidas de isolamento de governadores.
Em abril, durante entrevista em Manaus, disse: “Nosso Exército, nossas Forças Armadas, se precisar iremos para a rua não para manter o povo dentro de casa, mas para reestabelecer todo o artigo 5º da Constituição. E se eu decretar isso vai ser cumprido”.
Para a professora de direito Heloisa Fernandes Câmara, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), as situações para as quais ele ameaçava usar instrumentos excepcionais da Constituição não correspondem às previstas na lei.
Quais seriam possíveis caminhos de um golpe?
É difícil prever o que poderia levar a uma quebra do Estado Democrático de Direito, pois os caminhos são diversos.
“Golpe é ruptura do Estado Democrático. Pode se dar tanto do ponto de vista das forças militares nas ruas, de uma crescente corrosão das liberdades democráticas ou por intervenção parlamentar, ou do próprio presidente baixando uma norma dizendo que não tem mais eleição”, diz Marques Neto (USP).
Segundo Heloisa (UFPR), dificilmente o presidente se valeria das medidas excepcionais da Constituição, como estado de sítio e estado de defesa, para 2022, pois ambas exigem aprovação do Congresso, e ela não vê os congressistas aprovando tal instrumento para impedir as eleições.
Ela diz que, se o presidente tivesse apoio para dar um golpe, não faria ameaças e alardes toda vez que está em baixa nas pesquisas, mas mesmo assim considera que o teor das falas não pode ser ignorado.
“É não achar que não é possível, mas tampouco considerar que tem mais força do que tem.”
Bolsonaro conseguiria viabilizar seu plano golpista?
Entre os especialistas entrevistados, é consenso que as ameaças não podem ser vistas como mera retórica. Apesar disso, questionam se Bolsonaro teria apoio suficiente para promover um golpe e se manter no poder.
A organização das eleições é tarefa dada pela Constituição à Justiça Eleitoral, não cabendo ao presidente decidir se elas serão ou não realizadas.
O professor de direito público da FGV-Rio Wallace Corbo aponta, por exemplo, que, na hipótese de o presidente buscar anular os resultados das eleições por um decreto ou algum outro ato normativo, caberia aos demais Poderes agir.
“Se tomar qualquer ato que implique exacerbamento de suas competências, o Congresso tem a função de fiscalizar e controlar o presidente.”
Ele cita a queda de popularidade de Bolsonaro e a importância da manifestação popular, para demonstrar o custo que as instituições, como o Congresso e as Forças Armadas, assumiriam apoiando um golpe.
“A única forma de garantir que uma decisão do STF ou do Congresso não vai ser desrespeitada, de garantir que os freios e contrapesos da nossa Constituição —que são os controles sobre um presidente— vão funcionar, só se garante numa democracia com o apoio do povo.”
Considerando o golpe tradicional, com apoio das Forças Armadas, a questão é justamente se estariam a seu lado.
Para Svartman (Abed), ainda que parte das Forças estejam comprometidas com a retórica do presidente, há uma parcela de oficiais jovens preocupada com a crescente politização e insubordinação nas Forças Armadas e nas de segurança pública nos estados.
Ele diz que, embora o presidente venha perdendo popularidade, é preciso lembrar que Bolsonaro tem muitos apoiadores convictos que estão nas forças policiais e nas Forças Armadas e podem optar “por agir ou deixar de agir”, a exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos.
Em relação às polícias, os sinais de alerta, no país, estão nos episódios cada vez mais recorrentes de quebra da hierarquia e de politização.
Como sintetizou reportagem recente da Folha, predomina, entre cientistas políticos e estudiosos da segurança pública, a ideia de que hoje não existiria articulação nacional para uma insurreição orquestrada pelas polícias.
Apesar disso, a avaliação é de que, ainda que elas não embarquem como um todo em uma aventura disruptiva, episódios isolados de insubordinação podem ocorrer e provocar tumultos, confusão e mortes.
Sabendo que Bolsonaro tem pretensões de dar um golpe, o que é possível fazer?
Entrevistados consideram que as instituições precisam levar a sério as ameaças de Bolsonaro. Uma das reações seria o próprio impeachment.
Na avaliação da socióloga e professora da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) Fabiana Luci de Oliveira, do ponto de vista institucional, o estrago já foi feito em boa medida, dada a estratégia de Bolsonaro de deslegitimar as instituições democráticas.
Para ela, é preciso que as instituições reajam para além do discurso. “Me parece que a gente chegou a um ponto em que a retórica não vai segurar essa pressão que o presidente tem feito.”
Após a subida de tom de Bolsonaro, a fala mais contundente veio do presidente do TSE que disse que qualquer tentativa de impedir a realização de eleições em 2022 “configura crime de responsabilidade”.
Cabe unicamente a Arthur Lira criar uma comissão para analisar um dos mais de 120 pedidos de impeachment que esperam em sua gaveta. O presidente da Câmara, no entanto, tem feito declarações sinalizando que não deve agir nesse sentido.