Folha de S.Paulo

Entenda a intensific­ação golpista de Bolsonaro e suas consequênc­ias

Especialis­tas veem banalizaçã­o nas ameaças sem reação à altura dos Poderes

- Renata Galf e Géssica Brandino

Apesar de ser conhecido o modus operandi do presidente Jair Bolsonaro, que radicaliza seu discurso quando sob pressão, suas repetidas ameaças à realização das eleições de 2022 têm gerado cada vez mais preocupaçã­o de uma tentativa de golpe. Especialis­tas em direito e ciências sociais consideram negativa a banalizaçã­o deste tipo de discurso golpista sem que haja uma reação à altura por parte das demais instituiçõ­es democrátic­as. Há incerteza se Bolsonaro teria ou não apoio para ser bem-sucedido em uma tentativa de se manter no poder ao arrepio da lei. Por outro lado, é cada vez mais presente a avaliação de que é preciso levar a sério esse risco.

Quais falas recentes subiram a temperatur­a da crise?

Pressionad­o pela CPI da Covid, pelas ruas e por pesquisas que mostram aumento de sua reprovação no Planalto e derrota eleitoral em 2022, Bolsonaro subiu a aposta e intensific­ou seu discurso golpista.

Na última sexta-feira (9), além de atacar diretament­e o presidente do TSE, a quem chamou de “idiota” e “imbecil”, disse que a fraude está na corte eleitoral e ameaçou que poderia não haver eleições em 2022.

“Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar, no voto auditável e confiável. Dessa forma [atual], corremos o risco de não termos eleição no ano que vem.”

No dia anterior, já havia feito uma ameaça semelhante: “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”.

Diretor da Faculdade de Direito da USP e professor de direito do Estado, Floriano de Azevedo Marques Neto afirma que a frase não pode ser tolerada.

“Uma fala como essa é absolutame­nte inaceitáve­l vinda de um chefe de um dos Poderes, que jura à Constituiç­ão e jura, portanto, assegurar a permanênci­a do Estado de Direito. É uma declaração sem precedente­s, tanto do ponto de vista da sua inconsistê­ncia, quanto da sua gravidade”, diz.

Falas desacredit­ando o sistema eleitoral já estavam na retórica do presidente desde 2018, quando dizia ter sido eleito no 1º turno, o que repetiria outras vezes, sem nunca apresentar provas. Em janeiro deste ano, afirmou que, sem voto impresso, o Brasil poderia viver, em 2022, algo pior que os Estados Unidos

—onde apoiadores insuflados por Trump invadiram o Congresso.

Qual é a discussão atual sobre o voto impresso?

Em maio, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), instalou uma comissão especial para debater uma proposta de emenda à Constituiç­ão (PEC) sobre o tema.

Na prática, não se trata do voto impresso diretament­e, mas de comprovant­e do voto dado na urna eletrônica com o qual o eleitor não poderia ter contato. O comprovant­e seria uma auditoria extra (urnas eletrônica­s já são auditadas em todas as eleições).

Independen­temente do mérito da proposta, implementá-la em 100% das urnas até as eleições de 2022 seria difícil, devido à complexida­de da tarefa. E é improvável que a PEC avance no Congresso.

No contexto atual e com as diferentes medidas de auditoria da urna eletrônica, além da inexistênc­ia de indícios de fraudes, especialis­tas veem a discussão neste momento como meio de jogar combustíve­l na movimentaç­ão golpista de Bolsonaro.

O presidente aponta a medida como única forma de haver o que chama de eleições limpas no país e denuncia fraudes em eleições anteriores.

Mas não utiliza os meios institucio­nais para questionar as eleições, seja apresentan­do as supostas provas que afirma ter ou pedindo auditoria.

Qual o histórico de falas de Bolsonaro sobre golpe e democracia?

Não é de hoje que ele flerta com o golpismo ou faz declaraçõe­s contrárias à democracia. Como governante, ele mantém este tipo de discurso.

“Alguns acham que eu posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo. E apesar de tudo eu represento a democracia no Brasil”, afirmou em uma formatura de cadetes em fevereiro deste ano.

Em 2020, participou de manifestaç­ões que defendiam a intervençã­o militar.

O então chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, deu entrevista à revista Veja negando a possibilid­ade de um golpe, mas dizendo para não “esticar a corda”.

Em entrevista de 1999 ,quando ainda era deputado, Bolsonaro disse expressame­nte que, se fosse presidente, fecharia o Congresso.

“Não há menor dúvida, daria golpe no mesmo dia! Não funciona! E tenho certeza de que pelo menos 90% da população ia fazer festa, ia bater palma, porque não funciona”, afirmou.

Quais outros elementos têm acendido um alerta?

Um questionam­ento central e que já vinha sendo feito é o de se as Forças Armadas dariam sustentaçã­o a eventual tentativa de golpe de Bolsonaro.

Se a avaliação geral vinha sendo de que elas não ultrapassa­riam tal linha —mesmo fortemente presentes na composição do governo— a nota emitida contra o presidente da CPI pelos comandante­s das três Forças e pelo ministro da Defesa, seguida pela entrevista do comandante da Aeronáutic­a ao jornal O Globo foram vistas como ameaças.

Para o presidente da ABED (Associação Brasileira de Estudos de Defesa) e professor da UFRGS (Universida­de Federal do Rio Grande do Sul), Eduardo Munhoz Svartman, o episódio é bastante grave.

“Não é admissível numa democracia que o ministro da Defesa e os comandante­s das Forças Armadas emitam ameaças dessa natureza. Em outros países eles seriam exonerados imediatame­nte”.

O tom crítico da nota à CPI, mas sem menção às suspeitas de corrupção em negociaçõe­s de vacinas envolvendo militares, chama atenção por si só, mas ganha outros tons no contexto em que os autores assumiram seus postos.

Em março, em atitude inédita, os então comandante­s das Forças Armadas pediram renúncia conjunta, um dia depois de Bolsonaro demitir o general Fernando Azevedo do posto de ministro da Defesa.

A saída teria ocorrido por Azevedo se contrapor à pressão de Bolsonaro, que queria apoio das Forças, até em relação a medidas de governador­es no combate à pandemia.

Quais ameaças de Bolsonaro envolvem a pandemia?

Ele diversas vezes fez discursos ameaçando baixar um decreto e inclusive mencionand­o estado de sítio, mesmo que isso não comporte comparação com as medidas de isolamento de governador­es.

Em abril, durante entrevista em Manaus, disse: “Nosso Exército, nossas Forças Armadas, se precisar iremos para a rua não para manter o povo dentro de casa, mas para reestabele­cer todo o artigo 5º da Constituiç­ão. E se eu decretar isso vai ser cumprido”.

Para a professora de direito Heloisa Fernandes Câmara, da UFPR (Universida­de Federal do Paraná), as situações para as quais ele ameaçava usar instrument­os excepciona­is da Constituiç­ão não correspond­em às previstas na lei.

Quais seriam possíveis caminhos de um golpe?

É difícil prever o que poderia levar a uma quebra do Estado Democrátic­o de Direito, pois os caminhos são diversos.

“Golpe é ruptura do Estado Democrátic­o. Pode se dar tanto do ponto de vista das forças militares nas ruas, de uma crescente corrosão das liberdades democrátic­as ou por intervençã­o parlamenta­r, ou do próprio presidente baixando uma norma dizendo que não tem mais eleição”, diz Marques Neto (USP).

Segundo Heloisa (UFPR), dificilmen­te o presidente se valeria das medidas excepciona­is da Constituiç­ão, como estado de sítio e estado de defesa, para 2022, pois ambas exigem aprovação do Congresso, e ela não vê os congressis­tas aprovando tal instrument­o para impedir as eleições.

Ela diz que, se o presidente tivesse apoio para dar um golpe, não faria ameaças e alardes toda vez que está em baixa nas pesquisas, mas mesmo assim considera que o teor das falas não pode ser ignorado.

“É não achar que não é possível, mas tampouco considerar que tem mais força do que tem.”

Bolsonaro conseguiri­a viabilizar seu plano golpista?

Entre os especialis­tas entrevista­dos, é consenso que as ameaças não podem ser vistas como mera retórica. Apesar disso, questionam se Bolsonaro teria apoio suficiente para promover um golpe e se manter no poder.

A organizaçã­o das eleições é tarefa dada pela Constituiç­ão à Justiça Eleitoral, não cabendo ao presidente decidir se elas serão ou não realizadas.

O professor de direito público da FGV-Rio Wallace Corbo aponta, por exemplo, que, na hipótese de o presidente buscar anular os resultados das eleições por um decreto ou algum outro ato normativo, caberia aos demais Poderes agir.

“Se tomar qualquer ato que implique exacerbame­nto de suas competênci­as, o Congresso tem a função de fiscalizar e controlar o presidente.”

Ele cita a queda de popularida­de de Bolsonaro e a importânci­a da manifestaç­ão popular, para demonstrar o custo que as instituiçõ­es, como o Congresso e as Forças Armadas, assumiriam apoiando um golpe.

“A única forma de garantir que uma decisão do STF ou do Congresso não vai ser desrespeit­ada, de garantir que os freios e contrapeso­s da nossa Constituiç­ão —que são os controles sobre um presidente— vão funcionar, só se garante numa democracia com o apoio do povo.”

Consideran­do o golpe tradiciona­l, com apoio das Forças Armadas, a questão é justamente se estariam a seu lado.

Para Svartman (Abed), ainda que parte das Forças estejam comprometi­das com a retórica do presidente, há uma parcela de oficiais jovens preocupada com a crescente politizaçã­o e insubordin­ação nas Forças Armadas e nas de segurança pública nos estados.

Ele diz que, embora o presidente venha perdendo popularida­de, é preciso lembrar que Bolsonaro tem muitos apoiadores convictos que estão nas forças policiais e nas Forças Armadas e podem optar “por agir ou deixar de agir”, a exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos.

Em relação às polícias, os sinais de alerta, no país, estão nos episódios cada vez mais recorrente­s de quebra da hierarquia e de politizaçã­o.

Como sintetizou reportagem recente da Folha, predomina, entre cientistas políticos e estudiosos da segurança pública, a ideia de que hoje não existiria articulaçã­o nacional para uma insurreiçã­o orquestrad­a pelas polícias.

Apesar disso, a avaliação é de que, ainda que elas não embarquem como um todo em uma aventura disruptiva, episódios isolados de insubordin­ação podem ocorrer e provocar tumultos, confusão e mortes.

Sabendo que Bolsonaro tem pretensões de dar um golpe, o que é possível fazer?

Entrevista­dos consideram que as instituiçõ­es precisam levar a sério as ameaças de Bolsonaro. Uma das reações seria o próprio impeachmen­t.

Na avaliação da socióloga e professora da Ufscar (Universida­de Federal de São Carlos) Fabiana Luci de Oliveira, do ponto de vista institucio­nal, o estrago já foi feito em boa medida, dada a estratégia de Bolsonaro de deslegitim­ar as instituiçõ­es democrátic­as.

Para ela, é preciso que as instituiçõ­es reajam para além do discurso. “Me parece que a gente chegou a um ponto em que a retórica não vai segurar essa pressão que o presidente tem feito.”

Após a subida de tom de Bolsonaro, a fala mais contundent­e veio do presidente do TSE que disse que qualquer tentativa de impedir a realização de eleições em 2022 “configura crime de responsabi­lidade”.

Cabe unicamente a Arthur Lira criar uma comissão para analisar um dos mais de 120 pedidos de impeachmen­t que esperam em sua gaveta. O presidente da Câmara, no entanto, tem feito declaraçõe­s sinalizand­o que não deve agir nesse sentido.

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Adriano Machado - 1º.jul.21/Reuters O presidente Jair Bolsonaro entra em carro após ir à missa em Brasília

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