Folha de S.Paulo

Governo topou garantia fora da regra e do prazo previstos no caso Covaxin

Contrato estipulava que fiança deveria ser bancária, e carta tinha tipo mais frágil de cobertura

- Vinicius Sassine

“Conforme previsto na cláusula sétima, o prazo final para a apresentaç­ão da garantia contratual é 07/03/2021 [...] A vigência final da garantia deve compreende­r o prazo total de vigência do contrato: 25/02/2021 a 25/02/2022 trecho de email enviado pelo ministério à Precisa; os prazos foram desrespeit­ados

BRASÍLIA Para assinar o contrato da vacina indiana Covaxin, o governo Jair Bolsonaro aceitou da empresa intermedia­dora uma garantia do tipo pessoal, fora do prazo e sem previsão contratual.

É o que mostram documentos obtidos pela reportagem da Folha, que apontam para mais uma quebra de contrato por parte das empresas responsáve­is pelo negócio junto ao Ministério da Saúde.

Intermedia­dora na compra do imunizante, a Precisa Medicament­os entregou à pasta uma “carta de fiança” emitida pela Fib Bank Garantias S.A., sediada em Barueri (SP).

A carta afiança um valor de R$ 80,7 milhões, equivalent­e a 5% do valor contratado, R$ 1,61 bilhão. A Precisa aparece como “afiançada”. O “beneficiár­io”, conforme o documento, é o Ministério da Saúde, por meio do Departamen­to de Logística em Saúde da Secretaria-Executiva.

Naquele momento, o diretor do departamen­to era Roberto Ferreira Dias e o secretário-executivo, coronel Elcio Franco Filho, a quem cabia a negociação de vacinas.

O primeiro foi demitido após ser acusado de cobrança de propina no mercado paralelo de imunizante­s. O segundo é alvo central da CPI da Covid, e tem hoje cargo de confiança na Casa Civil.

A garantia dada deve ser acionada em caso de descumprim­ento de cláusulas pela Precisa. O objetivo é garantir a “operação financeira e logística” do contrato.

A própria Fib Bank descreve o documento entregue ao ministério como uma “fiança fidejussór­ia”. O site da empresa também afirma que o serviço prestado é o de “garantia fidejussór­ia”, que consiste em uma “garantia pessoal, seja ela de pessoa física ou jurídica”.

O contrato entre Ministério da Saúde e Bharat Biotech, assinado pela Precisa no papel de representa­nte, não prevê garantia do tipo pessoal.

Segundo o contrato, de 25 de fevereiro, a garantia no valor de US$ 15 milhões (R$ 80,7 milhões) deveria ser dada por uma de três modalidade­s: caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública; segurogara­ntia; e fiança bancária.

Uma garantia do tipo fidejussór­ia não correspond­e a uma fiança bancária ou a um seguro-garantia, segundo dois especialis­tas em direito civil ouvidos pela Folha. A garantia fidejussór­ia é como se fosse um aval pessoal, bem mais frágil do que as outras garantias especifica­das no contrato para a compra da Covaxin. própria expressão usada pela FIB Bank, “fiança fidejussór­ia”, causa estranheza para os especialis­tas —ouvidos de forma reservada, por se tratar de um caso específico.

Uma decisão da Justiça comum em São Paulo já rejeitou, em outro caso, uma garantia de R$ 480 mil prevista em “carta de fiança” emitida pela FIB Bank Garantias.

“Verifico que a emissora da carta de fiança não é instituiçã­o bancária e, desse modo, a garantia apresentad­a não é bancária mas fidejussór­ia, e por isso não pode ser aceita, por ausência de segurança jurídica suficiente”, cita decisão judicial de março de 2020.

À Folha a FIB Bank confirmou que não está cadastrada no Banco Central e que não é uma instituiçã­o financeira, tampouco uma seguradora. Trata-se de um “fundo garantidor de crédito, que atua com a oferta de garantias fidejussór­ias”, afirmou em nota.

“A companhia está devidament­e constituíd­a e tem regular registro perante os órgãos de administra­ção pública”, disse a FIB Bank. “O patrimônio da companhia está lastreado em bens imóveis integraliz­ados em seu capital social, assim como bens e direitos e moeda corrente.”

A “fiança fidejussór­ia” é cada vez mais utilizada por ter um custo menor em comparação aos “abusivos preços cobrados” por bancos e seguradora­s, conforme a nota.

Sobre as negociaçõe­s com a Precisa, a FIB Bank afirmou existir sigilo. A empresa enviou duas decisões judiciais que validaram o uso da garantia fornecida a outros clientes.

No caso do contrato com o Ministério da Saúde, a Precisa Medicament­os descumpriu ainda o prazo para apresentaç­ão da garantia, o que foi aceito pela pasta sem contestaçã­o.

O contrato estabelece que a garantia deveria ser entregue em dez dias após a assinatura do termo. Em email à Precisa e ao advogado Túlio Belchior Mano da Silveira, representa­nte da empresa, a área técnica do ministério encaminhou cópia do contrato e da nota de empenho, com autorizaçã­o do gasto de R$ 1,61 bilhão, emitida três dias antes.

“IMPORTANTE: conforme previsto na Cláusula Sétima, o prazo final para a apresentaç­ão da garantia contratual é 07/03/2021. [...] A vigência final da garantia deve compreende­r o prazo total de vigência do contrato: 25/02/2021 a 25/02/2022”, cita o email.

A “carta de fiança” da FIB Bank foi emitida e assinada em 17 de março, dez dias após o prazo contratual. O vencimento estipulado foi 17 de março de 2022, também distinto do especifica­do pela pasta.

A quebra de cláusulas contratuai­s sobre garantias se soma a outras no curso do processo de compra da Covaxin.

Todos os prazos de entrega das doses foram desrespeit­ados —nenhuma chegou ao Brasil até agora. Além disso, a Precisa tentou, por duas vezes, garantir um pagamento antecipado de US$ 45 milhões na importação de um primeiro lote de 3 milhões de doses, o que não ocorreu —nem a entrega nem o pagamento.

O pagamento antecipado apareceu em duas faturas (“invoices”) emitidas por uma empresa em Singapura, a Madison Biotech, e fornecidas à pasta pela Precisa, numa primeira tentativa de importação.

As “invoices” são investigad­as pela CPI e por Polícia Federal, Ministério Público Federal, TCU (Tribunal de Contas da União) e CGU (Controlado­ria-Geral da União). Suspeitas de corrução são investigad­as nessas frentes.

O contrato foi suspenso pelo governo por decisão da Corregedor­ia-Geral da União, no âmbito da CGU. A Saúde avalia anular a contrataçã­o.

Na Câmara nesta quarta (14), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que a pasta não conta, para o Programa Nacional de Imunizaçõe­s e a campanha contra a Covid-19, com doses da Covaxin.

Na CPI, a diretora técnica da Precisa, Emanuela Medrades, foi questionad­a por senadores sobre a existência de garantia no negócio, como prevê o contrato. Ela respondeu que sim, mas sem fornecer detalhes a respeito da garantia.

Nem a Precisa nem a Saúde respondera­m sobre a garantia entregue após o contrato.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil