Folha de S.Paulo

Se fosse brasileiro, ex-presidente da África do Sul estaria livre

- Lucas Alonso

bauru (sp) Se Jacob Zuma, expresiden­te da África do Sul, fosse brasileiro, muito provavelme­nte estaria respondend­o às várias acusações de corrupção das quais é alvo em liberdade. Depois de ignorar convocaçõe­s e faltar a diversas audiências nos processos criminais a que responde, ele foi condenado a 15 meses de prisão por “desacato à Justiça” —crime não previsto na legislação brasileira.

Na decisão em que determinou a detenção de Zuma, a juíza Sisi Khampepe, do Tribunal Constituci­onal, a mais alta instância da Justiça sulafrican­a, enumera episódios em que o ex-presidente foi convocado para depor e colaborar com as investigaç­ões, mas deixou de comparecer.

Zuma, em resposta às intimações e mesmo diante da iminência do indiciamen­to por desacato à corte, divulgou comunicado­s em que se dizia vítima de uma caça às bruxas com motivação política. Para Khampepe, no entanto, as declaraçõe­s de Zuma caracteriz­aram uma tentativa “imprópria e irresponsá­vel” de “minar intenciona­lmente a lei”.

“Zuma tinha todo o direito e oportunida­de de defender seus direitos, mas optou, uma e outra vez, por rejeitar publicamen­te e difamar totalmente o Judiciário”, escreveu a magistrada na decisão de 127 páginas, acrescenta­ndo que o Tribunal Constituci­onal fez tudo para salvaguard­ar o direito a defesa do acusado, apesar de sua “insolência”.

“Suas tentativas de despertar a simpatia do público por meio de tais alegações vão de encontro à razão. Elas são um insulto à dispensa constituci­onal pela qual tantas mulheres e homens lutaram e perderam suas vidas”, continuou.

Mas o discurso de Zuma encontrou respaldo em parte dos sul-africanos que, desde a última sexta-feira, foram às ruas em manifestaç­ões políticas contra a prisão do expresiden­te. Os atos, porém, foram rapidament­e sobreposto­s por uma onda de violência e saques em lojas que deixou ao menos 72 mortos.

Se estivesse sujeito às normas do direito brasileiro, Zuma poderia estar assistindo ao caos que se instalou nas maiores cidades da África do Sul em liberdade, porque não há na legislação do Brasil um crime tipificado como “desacato à Justiça”. Um dos principais motivos é que o sistema legal na África do Sul é fundamenta­lmente diferente do que vigora no Brasil, explica Maristela Basso, professora de direito internacio­nal da Universida­de de São Paulo (USP).

Segundo a especialis­ta, o modelo brasileiro é conhecido como “civil law”, também chamado de direito romanogerm­ânico. É o mesmo sistema vigente na Europa continenta­l e na América Latina.

“O ‘civil law’ tem por base o direito codificado, a lei escrita em códigos, de tal forma que o indivíduo saiba exatamente o que ele pode ou não pode fazer. Assim, os juízes apreciam e levam em conta fundamenta­lmente a lei, o sistema de direito civil”, explica Basso.

Já a África do Sul segue o modelo de “common law”, também chamado de direito consuetudi­nário. É o sistema que vigora em países colonizado­s pelos ingleses, como a própria África do Sul, além de Índia, parte do Canadá e quase todos os EUA —com exceção da Louisiana, onde há forte influência francesa, que segue um modelo híbrido.

O “common law” se diferencia do direito romano porque dá ao juiz a possibilid­ade de proferir suas decisões levando mais em consideraç­ão a regra dos precedente­s jurídicos do que a lei propriamen­te dita.

“Evidenteme­nte, nesse julgamento há lei e, nesses países, há códigos e constituiç­ões, mas digamos que o juiz tem maior liberdade para julgar com suas convicções e, fundamenta­lmente, mas não exclusivam­ente, levando em conta o precedente”, diz Basso.

Apesar das diferenças dos sistemas legais, um crime como o cometido por Zuma na África do Sul poderia estar contemplad­o em outras tipificaçõ­es penais na lei brasileira, como o crime de “desacato à autoridade”, em caso de ofensa ou desrespeit­o a um funcionári­o público no exercício de sua função.

Não há no Brasil, contudo, a possibilid­ade de “desacatar a Justiça”, enquanto um dos poderes integrante­s do Estado, ao lado do Legislativ­o e do Executivo, explica Marco Aurélio Florêncio, professor de direito penal da Universida­de Presbiteri­ana Mackenzie. “O Poder Judiciário não possui honra subjetiva, isto é, não pode ser diretament­e ofendido. É a mesma regra que se aplica às pessoas jurídicas que não podem ser vítimas do crime de injúria, por exemplo”, diz o especialis­ta.

Deixar de atender uma convocação da Justiça, como Zuma fez na África do Sul, é prática relativame­nte comum no Brasil, afirma Basso, da USP. A professora cita como exemplos casos em que convocados a depor no âmbito da Operação Lava Jato simplesmen­te não o fizeram, o que, em várias ocasiões, levou a ações de condução coercitiva. Na condição de investigad­o, Zuma não cometeria crime no Brasil se descumpris­se uma intimação, mas sua ausência poderia acarretar implicaçõe­s à sua defesa, visto que o processo poderia ser julgado à revelia, sem a presença do acusado.

Araken de Assis, desembarga­dor aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e professor emérito da Pontifícia Universida­de Católica do mesmo estado, estudou a possibilid­ade de tipificaçã­o do “desacato à Justiça” no direito brasileiro. Em artigo, concluiu que “parece implausíve­l que se reconheça ao juiz o princípio da autoridade, confiando à sua humana falibilida­de o grave poder de induzir o comportame­nto dos litigantes à subordinaç­ão”, ou seja, não é boa ideia dar mais poder a quem está sujeito a erros e excessos.

Basso concorda. “Alargar interpreta­ções abre brecha para o exercício abusivo da autoridade, seja por parte do delegado, do juiz ou de qualquer outro agente público”, afirma.

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Siphiwe Sibeko/Reuters Homem em frente a grafite com as palavras “Zuma livre” em Vosloorus, na África do Sul

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