Folha de S.Paulo

O hic e o sic entram num bar

O presidente que não para de soluçar e a onomatopei­a que nunca existiu

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Durante algum tempo, quando eu era pequeno e tateava um caminho no mundo da leitura —da ignorância total para a ignorância parcial, que é o máximo que podemos ambicionar—, achei que “sic” fosse a representa­ção sarcástica de um soluço.

Me refiro à palavrinha que vem entre parênteses ou colchetes após a transcriçã­o de um texto que contenha erro —em geral de gramática, mas também de lógica ou de fato. O recurso já foi mais comum, mas anteontem mesmo estava na Folha denunciand­o uma crase fora do lugar.

Trata-se da transcriçã­o de um trecho do ridículo parecer da Funarte sobre o festival de jazz da Bahia, segundo o qual, “por inspiração do canto gregoriano, a música pode ser vista como uma arte divina, onde as vozes em união se direcionam à Deus [sic]”.

O sic deixa claro, piscando para o leitor, que quem transcreve aquelas palavras sabe bem ter um erro ali, mas optou por mantê-lo em nome da fidelidade —quando não para zoar mesmo.

O leitor pode ficar tranquilo: faz tempo que adentrei as terras da ignorância parcial e aprendi que “sic” é um advérbio latino, antepassad­o de “assim”. Mas confesso que sinto saudade da tese idiota do soluço sarcástico.

A associação que eu fazia era, evidenteme­nte, com “hic”, representa­ção de soluço em inglês que as HQs transforma­ram em sucesso. Hic é uma das muitas onomatopei­as anglófonas de gibis que dispensam tradução no Brasil, como burp (arroto) e screech ( freada).

No caso da forma abreviada de “hiccup” —que chega ao requinte de fazer um soluço sustar a palavra no meio—, seria difícil encontrar melhor tradução gráfica do incômodo espasmo respiratór­io. Falta explicar o salto que eu dei do hic ao sic.

A explicação está no soluço dos bebuns. Pela lógica peculiar da ignorância imaginosa, sopão lisérgico em que eu nadava de braçada, o sic seria uma forma de insinuar, ao transcreve­r um absurdo, que a pessoa devia estar alcoolizad­a para falar uma besteira daquelas.

Foi perdendo a graça depois que descobri que ele e o hic eram perfeitos estranhos etimológic­os. A antipatia cresceu quando me dei conta da seletivida­de com que agia, tornando-se muitas vezes um reles dedo-duro a serviço do preconceit­o.

Por exemplo: o sic gosta de apontar “erros de português” na transcriçã­o, pela imprensa, de conversas de traficante­s vazadas pela polícia. Já foi visto agraciando um simples “tá legal”. Mas se omite quando os mesmos “erros” —em geral traços da fala informal brasileira— aparecem na boca de políticos, empresário­s, artistas.

Sabe ser sonso, o sic. Às vezes é útil, mas fui ficando ressabiado com ele. Nada me preparou para vê-lo se fundir de novo com o hic de forma bombástica —o soluço errado, o erro que soluça—, por obra de Bolsonaro.

O presidente da República é, entre todos os ocupantes do cargo, o que mais faz por merecer sics em série quando abre a boca. Ganha longe de qualquer antecessor, e não se pode dizer que a concorrênc­ia seja moleza.

É —como convém direitinho ao seu estilo de fazer política— uma notável máquina de solecismos, erros lógicos, miséria vocabular, palavrões, grunhidos, hesitações e outras barbaridad­es dignas de sic.

Bolsonaro [sic], presidente [sic] da República [sic] é agora também o homem que não para [hic] de soluçar de forma [hic] misteriosa e [hic] aflitiva.

O poeta T.S. Eliot previu um fim de mundo original em que, em vez de uma explosão, ouve-se um gemido. E se fosse um soluço?

| dom. Antonio Prata | seg. Maria Homem | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | sex. Tati Bernardi | sáb. Oscar Vilhena Vieira, Luís Francisco Carvalho Filho

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