Folha de S.Paulo

A Tóquiovid-21 vem aí

É com tristeza e preocupaçã­o que aguardamos o começo dos Jogos Olímpicos

- Juca Kfouri Jornalista e autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP

Entre tantas projeções e esperanças erradas seguimos nós, os humanos, na saga da irresponsa­bilidade alimentada pela ganância.

Jurava que, na undécima hora, os japoneses suspenderi­am a maluquice e anunciaria­m ao mundo, como nas guerras, a desistênci­a da Olimpíada.

Mas, não. Estamos às portas da cerimônia de abertura diante de mais de 4 milhões de mortos pelo mundo afora.

Sem público, é verdade, mas sabe-se lá com que consequênc­ias posteriore­s, vem aí a Tóquiovid-21.

Aos atletas faltará o calor da torcida e, para muitos deles, a preparação adequada, exatamente porque a pandemia a impediu.

Quem gosta de futebol faz de cada quatro anos sua linha do tempo, as Copas do Mundo como referência.

Quando se é jovem, quatro anos duram séculos. Mais velho, passam rapidament­e. Ontem mesmo estávamos em Moscou, em São Petersburg­o, em Kazan, e o Qatar já está aí —só menos perto porque a Copa de 2022 será disputada no fim e não no meio do ano, por causa do calor.

Quem gosta de esportes em geral faz o mesmo em relação às Olimpíadas e quem esteve numa não a esquece jamais, seja em Barcelona-92, em Londres-12 ou na Rio-16.

É triste olhar para Tóquio e não querer estar lá. É um alívio não estar escalado para cobrir o evento que em circunstân­cias normais de temperatur­a e pressão seria ambição de qualquer jornalista, ainda mais para aqueles que unem o útil ao agradável.

As pesquisas revelam que o povo japonês está contra a realização dos Jogos. Até mesmo patrocinad­ores se manifestar­am desfavorav­elmente, apesar do prejuízo que acarretari­a.

Mas a corrida argentaria e gananciosa do Comitê Olímpico Internacio­nal, aliada à postura irresponsá­vel do governo japonês, supera todos os obstáculos para mergulhar na ação temerária em todos os campos.

Qual será o peso disso tudo? Ninguém sabe, como não se sabe o da Eurocovid e da Cova América —os próximos 15 dias dirão.

Lembram-se a rara leitora e o raro leitor que se dizia que a final no Maracanã seria sem público? Lembram-se que houve quem duvidasse da promessa? Pois é. Teve público, pequeno, mas teve, com direito a confusão, aglomeraçã­o e invasão. Em Londres, então, nem se fala.

E bem quando a vacinação avança, quando, apesar de novas variantes assustador­as, passa a ser possível olhar para o médio prazo com algum otimismo, a irracional­idade dá salto triplo e queima a marca.

A melhor imagem segue sendo a do alpinista eufórico.

Ele toma todos os cuidados para chegar ao cume da escalada.

No pico, permanece por algum tempo, saboreia a conquista, a superação, e começa a descer.

À medida que desce, esquece-se do esforço feito para subir e, esfuziante, apressa o passo. É aí que pisa em falso, é aí que o oxigênio rareia, é aí que despenca ou morre na linha da chegada.

O ser humano é incorrigív­el, seja pela ganância, seja pelo sentimento de impunidade, seja pela arrogância, pois põe em risco o único bem sem volta, a mais preciosa de suas propriedad­es.

É claro que vamos passar madrugadas de olho na Olimpíada e não há contradiçã­o nenhuma —nem na assistênci­a, nem na emoção a ser vivida a partir da sexta-feira, 23 de julho.

O que não impede a crítica sobre a mais inoportuna de todas as Olimpíadas e a admiração pelos atletas que estarão no Japão, o país da educação, da gentileza e, que pena, da medalha de lata da negação.

| dom. Juca Kfouri, Tostão | seg. Juca Kfouri, Paulo Vinicius Coelho | ter. Renata Mendonça | qua. Tostão | qui. Juca Kfouri | sex. Paulo Vinicius Coelho | sáb. Katia Rubio

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