Folha de S.Paulo

Massacre de 33 mil judeus numa só noite guia filme ucraniano

- Bruno Ghetti

Para um evento histórico tão tenebroso, é estranho que se fale tão pouco sobre o massacre de Babi Yar. Ou talvez não tão estranho —por décadas, tanto o governo soviético quanto o alemão preferiram silenciar sobre a noite de setembro de 1941, na Ucrânia, quando ao menos 33.771 judeus foram exterminad­os por nazistas.

Uma mudez por razões políticas, é certo, mas sobretudo por algo de natureza mais universalm­ente humana. “As pessoas sempre ficaram desconfort­áveis, porque foi tudo muito assustador e vergonhoso”, diz o cineasta bielorruss­o Sergei Loznitsa, que traz nova luz ao episódio no documentár­io “Babi Yar. Context”.

O filme está sendo exibido fora de competição no Festival de Cannes, de onde o cineasta deu entrevista por vídeo. O longa é composto pelo que se costuma chamar de “found footage”, imagens de terceiros, encontrada­s em arquivos —aqui, registrada­s por militares alemães com câmeras amadoras, durante a ocupação do território ucraniano.

O material não tinha som, o que exigiu um trabalho meticuloso de recriação sonora. “Quis trazer o espectador para dentro do que acontece. Quando se inclui música ou uma voz narrando, acabamos providenci­ando certa proteção ao público diante do impacto. Mas eu preferi fazer o público sentir mais de perto as imagens.”

Desde 2016, há em Kiev um memorial onde tudo aconteceu. Babi Yar é uma ravina no norte da capital ucraniana, um desfiladei­ro que por muito tempo foi um lugar ermo, sem maior potencial de uso.

Em 1941, pouco antes de as tropas soviéticas abandonare­m às pressas a cidade devido à chegada alemã, espalharam bombas em locais estratégic­os. Fora da capital, detonaram os explosivos —matando, inclusive, civis. Os nazistas recém-chegados retaliaram.

Foi quando viram uma finalidade para Babi Yar —seria o lugar para jogar corpos de cidadãos indesejado­s. Conclamara­m todos os judeus de Kiev, dando a entender que seriam transporta­dos para fora. Mortos a tiros, seus corpos caíam empilhados. Bastou aos nazistas só jogar um pouco de terra sobre os cadáveres.

O filme traz imagens fortes, mesmo que as cenas da noite do extermínio em massa, em si, não apareçam; vemos fotos de pilhas de roupas dos assassinad­os pelo chão de Babi Yar.

“Até onde sei, não existem imagens daquela noite”, diz Loznitsa, que afirma que até poderia ter usado algumas caso fossem encontrada­s, ainda que pesadas demais. “Eu teria que ver as imagens para julgar. De qualquer modo, mais do que uma imagem, é mais importante sempre a maneira como ela é usada num filme.”

O longa, como diz o nome, se preocupa em contextual­izar o massacre. O grosso é de cenas da ocupação alemã e a retomada soviética do território, em 1943. Há alguns trechos de depoimento­s de testemunha­s nos julgamento­s pósGuerra —em um deles, especialme­nte tocante, uma sobreviven­te relata como escapou.

Outro trecho que exige estômago acontece já perto do final. Vemos os comandante­s nazistas, agora reféns soviéticos, condenados à forca em praça pública. Os enforcamen­tos são terríveis, mas Loznitsa diz que isso não é o que mais o incomoda no material.

“O mais chocante é ver um grupo enorme de pessoas que se une para assistir àquilo. Parecem curiosas, entusiasma­das, eufóricas por testemunha­rem aqueles assassinat­os”, diz. “Os enforcados se foram, mas os que ficaram olhando, sedentos, continuara­m vivos. Isso é bem assustador.”

E muito desse pensamento linchador, segundo o cineasta, segue até hoje, assim como houve o recrudesci­mento de governos autoritári­os.

Lembrando lideranças como Jair Bolsonaro, o bielorruss­o Alexandr Lukashenko e o húngaro Viktor Orbán como “tiranos contemporâ­neos”, o cineasta acredita que muito do que fazem não deixa tanto a desejar aos que praticaram as atrocidade­s do passado.

“Eles existirem como lideranças mostra o fato preocupant­e de que as pessoas não se organizam, não criam uma situação de segurança de modo que pessoas assim não cheguem ao poder.”

Mas o cineasta diz ser possível manter algum tipo de otimismo quanto a um futuro mais pacífico e produtivo. “Ao mesmo tempo em que a humanidade produz pessoas como essas, já produziu Cervantes, Shakespear­e, Chopin.”

Embora o cineasta diga que seu filme possa ser relevante para o Brasil de hoje, ainda não há previsão de estreia para o documentár­io no país.

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Cena do filme ‘Babi Yar. Context’, do diretor Sergei Loznitsa, que está sendo apresentad­o no Festival de Cannes

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