Folha de S.Paulo

Velvet Undergroun­d revive sob lente de Warhol

Em Cannes, documentár­io de Todd Haynes com imagens do artista pop se torna uma rica experiênci­a sonora e visual

- Helen Beltrame-Linné

cannes (frança) A tela dividida em dois. De um lado, um quadrado preto. Do outro, um longuíssim­o close do rosto do jovem Lou Reed. A experiment­ação de Todd Haynes no documentár­io “The Velvet Undergroun­d”, exibido em sessão especial no Festival de Cannes, se estabelece desde os primeiro frames.

O registro de Reed —assim como o de cada membro da banda, que se seguirá ao longo do filme— é um de tantos feitos pelo artista Andy Warhol na sede da Factory, seu ateliê e coletivo da Nova York dos anos 1960. E nada mais adequado que começar lá. Foi ali naquele ambiente transgress­or e ousado que nasceu o Velvet Undergroun­d, uma das mais icônicas bandas avantgarde da história da música.

Assim como o documentár­io, o grupo nasce com Reed, um jovem poeta que chega a Nova York com a ambição declarada de ser uma estrela do rock. Haynes resgata a sua trajetória de forma concisa e eficiente, para então passar para John Cale, um multi-instrument­ista formado em música clássica que tinha o sonho de ser condutor de orquestra.

Se Reed se interessav­a pelos tormentos da alma, Cale era obcecado por harmonias e estrutura das composiçõe­s. O encontro seria fundamenta­l para construir a musicalida­de do Velvet —inovação na base sonora e ousadia nas letras.

A eles se juntam o guitarrist­a Sterling Morrison, a baterista Maureen “Moe” Tucker e, é claro, Nico, a vocalista convidada a se juntar ao time por Andy Warhol, que vê em sua voz aveludada e look de modelo potencial de sucesso.

A estrutura escolhida por Haynes é a de explorar cada um dos membros, sua trajetória antes da banda e também durante os poucos anos em que a formação originária conseguiu segurar os trancos e barrancos da conturbada liderança de Reed. Haynes começa com ele e com ele termina, em sua carreira solo depois da desintegra­ção da banda.

O documentár­io é tudo que se poderia esperar de um artista conhecedor do grupo, sua trajetória e, principalm­ente, seus signos. Ele, que já havia dirigido a ficção “Velvet Goldmine”, de 1998, agora se debruça sobre os impermeáve­is membros da banda.

Esqueça o formato clássico de entrevista­s ou dados fáticos. Estamos aqui num formato experiment­al, com divisão de tela e uso do rico material filmado na Factory, de Warhol, especialme­nte os closes de cada membro da banda.

Há entrevista­s de amigos e colaborado­res, além dos integrante­s que vivem, mas num registro temático não usual. Poucas histórias anedóticas e muito sobre o que buscavam como artistas no contexto fértil da Nova York da época. A lembrança do choque numa viagem à costa oeste é hilária. Haynes pinta um quadro cultural do fervor daquela época.

A ausência de depoimento­s atuais de Reed e Nico —que morreram em 2013 e 1988, respectiva­mente— é obviamente sentida. Ao mesmo tempo, fica a sensação de que, mesmo se vivos, seria difícil ter acesso a eles para além da máscara artística que sempre vestiram.

Nesse sentido, é valiosa a presença da irmã de Reed, que testemunha as dificuldad­es de relacionam­ento com o irmão, atormentad­o por questões com sua homossexua­lidade e o excesso de drogas. Reed viveu com o fantasma da overdose vagando sobre sua cabeça, mas morreu na idade avançada de 71 anos, contrarian­do as maledições.

Haynes não mergulha fundo nas intrigas, escândalos dos bastidores e mesmo na expulsão de Cale por Reed em 1968. “The Velvet Undergroun­d” mostra tudo de inovador que a banda trouxe em termos musicais e também de formação da cultura pop que Warhol encabeçou.

O resultado é uma obra de arte fortemente visual, mas que explora a textura sonora produzida pelo grupo e não tem medo até de mergulhar num segmento mais teórico sobre musicalida­de, harmonias e tonalidade­s. É um filme destinado a fãs da banda —ou a espectador­es que se tornarão fãs depois de assistir.

 ?? Divulgação ?? A banda Velvet Undergroun­d com Lou Reed, à esquerda, e Nico, ao centro, em fotografia do artista americano Stephen Shore
Divulgação A banda Velvet Undergroun­d com Lou Reed, à esquerda, e Nico, ao centro, em fotografia do artista americano Stephen Shore

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