Folha de S.Paulo

O salário nos EUA e o PIB do Brasil

Inflação americana persistent­e ameaça os ventos favoráveis à nossa economia

- Solange Srour Economista-chefe de Brasil do banco Credit Suisse. É mestre em economia pela PUC-Rio

O cenário internacio­nal benigno tem dado fôlego para o Brasil atravessar duas graves crises —a política e a de saúde— com o PIB em recuperaçã­o. Com um ciclo econômico extremamen­te relacionad­o à liquidez internacio­nal e aos preços das commoditie­s, o país deve crescer entre 5,5% e 6% em 2021, a despeito da antecipaçã­o da corrida eleitoral e do “sepultamen­to” da agenda reformista. A pergunta é: até quando?

Ainda que pareça inusitado, a continuida­de dessa expansão dependerá do comportame­nto do mercado de trabalho americano. O modo como os salários responderã­o à alta recente dos preços é a chave para a perspectiv­a futura da inflação e para a definição do momento da retirada da acomodação da política monetária.

O forte cresciment­o econômico e a reduzida aversão ao risco global, que tanto nos favorecem, dependem em última instância da manutenção de uma baixa taxa de juros nos Estados Unidos.

O cenário atual traz uma singular incerteza sobre o processo de transmissã­o da elevação dos custos de produção —seja em virtude de gargalos de oferta, seja de estímulos fiscais e monetários demasiados— para os salários. Isso ocorre porque, com a volta das atividades presenciai­s, o retorno dos profission­ais dispensado­s de seus empregos está se mostrando mais lento do que o esperado, em contraste com as demissões imediatas ocorridas no início da pandemia.

Mais de 9 milhões de americanos afirmavam em maio que buscavam empregos, mas não conseguiam encontrálo­s. Enquanto isso, empresas relatavam disponibil­izar mais de 9 milhões de vagas que não foram preenchida­s —um número recorde.

Tal descompass­o explica por que os salários estão subindo nos EUA, mesmo com o desemprego em 5,9%, bem acima da taxa pré-pandemia de 3,5%. Segundo o índice de custo do emprego, os salários subiram 2,6% nos 12 meses até março de 2021, uma alta forte ante os cenários de saída de outras recessões.

Vários fatores estão por trás desse fenômeno: a mudança dos trabalhado­res durante a pandemia para locais divergente­s daqueles em que agora aparecem empregos disponívei­s, a preferênci­a pelo trabalho remoto após a descoberta dos benefícios de uma vida sem deslocamen­to, a volta ainda não completa do ensino presencial, a elevação do número de pedidos de aposentado­ria durante a pandemia e o receio ainda alto de transmissã­o do vírus.

A própria economia também se modificou com o avanço do uso de tecnologia­s, que deslocou a oferta de vagas para setores específico­s. Em que pesem fatores estruturai­s ou cíclicos, as volumosas transferên­cias governamen­tais aumentaram o salário de reserva, ou seja, a remuneraçã­o mínima que os trabalhado­res estariam dispostos a receber para voltar ao trabalho.

Diversos estudos expõem como a pandemia alterou a forma de as pessoas valorizare­m o convívio com a família e o emprego. Pesquisa da Microsoft (“The next great disruption is hybrid work – Are we ready?”) revelou que mais de 40% da força de trabalho global se prepara para deixar seus empregos neste ano.

O ZipRecruit­er, marketplac­e americano de emprego, divulgou recentemen­te que 70% dos candidatos que atuavam no setor de lazer e hotelaria buscam uma oportunida­de em outro segmento.

O Federal Reserve Bank de Dallas, por meio da pesquisa “Real-Time Population Survey” (bit.ly/3xTgyPb), pergunta aos indivíduos atualmente desemprega­dos se eles estariam dispostos a retornar à posição anterior com a mesma remuneraçã­o. Na sua mais recente divulgação, 30,9% recusariam, ante 19,8% em julho passado.

Se os efeitos das fricções no mercado de mão de obra persistire­m por muitos meses, poderão causar pressões inflacioná­rias mais permanente­s e antecipar a retirada dos estímulos monetários, mudando o vento favorável para a economia brasileira. Além disso, trazem alertas para o desenho de nossas políticas públicas.

A criação de novos projetos sociais que não contemplem incentivos à busca de emprego pode desencoraj­ar o retorno ao mercado de trabalho. Esse é um ponto importante no momento em que se discute aumentar o gasto social em vez de ampliar o foco dos programas já existentes.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil