Folha de S.Paulo

Vendedor relata negociação paralela de doses com Saúde

Líder do governo Bolsonaro diz que ficou desconfort­ável com depoimento de representa­nte da Davati no Brasil

- Julia Chaib e Mateus Vargas

O empresário Cristiano Carvalho relatou ontem à CPI da Covid como foi a negociação de doses da AstraZenec­a, sem aval da fabricante, com a cúpula do Ministério da Saúde e a intermedia­ção de militares e de uma ONG evangélica. Ele confirmou que foi avisado sobre suposto pedido de propina.

Detalhes da frustrada operação, dados pelo representa­nte da Davati Medical Supply, fortalecer­am as investigaç­ões da cúpula e chegaram a constrange­r senadores da base de Jair Bolsonaro. Líder do governo, Fernando Bezerra (MDBPE) apontou “desconfort­o” com o depoimento.

O empresário Cristiano Carvalho relatou à CPI da Covid no Senado nesta quinta-feira (15) como foi a negociação por 400 milhões de doses da AstraZenec­a, sem aval da fabricante, com a cúpula do Ministério da Saúde e a intermedia­ção de militares e de uma ONG evangélica.

Os detalhes da frustrada operação bilionária que teve entre os líderes o próprio Cristiano, representa­nte da Davati Medical Supply e beneficiár­io do auxílio emergencia­l na pandemia, fortalecer­am as investigaç­ões da cúpula da CPI e chegaram a constrange­r senadores da base do presidente Jair Bolsonaro na sessão.

Cristiano confirmou à CPI que foi avisado sobre um suposto pedido de propina durante as negociaçõe­s. O cabo da PM de Minas Gerais Luiz Paulo Dominghett­i revelou à Folha que o ex-diretor de Logística da Saúde Roberto Ferreira Dias teria cobrado, em jantar no dia 25 de fevereiro, US$ 1 por dose para destravar o negócio com a Davati.

“Primeira vez que veio diretament­e a mim, sobre o nome do Roberto Ferreira Dias envolvido nisso foi, acredito eu, que no dia 12 de março, na minha vinda até aqui [Brasília]. Estávamos na Senah [ONG evangélica que participou das conversas]”, disse Cristiano no depoimento.

A testemunha da CPI também afirmou que foi procurada e manteve conversas com Dias por WhatsApp, ou seja, fora dos processos formais da Saúde, como mostrou a Folha.

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDBPE), apontou “desconfort­o” com as conversas de membros e ex-funcionári­os da gestão federal com os vendedores que nem sequer apresentav­am provas sólidas de terem as doses em mãos.

“Quero manifestar meu desconfort­o com diálogos que foram mantidos entre representa­ntes da Davati com servidores públicos e ex-servidores públicos”, disse Bezerra.

“A gente constata a falta de credenciam­ento, de capacidade técnica, de habilidade técnica para que esta empresa Davati, ou seus eventuais representa­ntes, pudessem tratar com o governo brasileiro para eventual aquisição ou compra de vacinas”, disse.

Cristiano ainda confirmou que as suas ofertas foram levadas a reuniões distintas com três membros da cúpula do Ministério da Saúde, além de seus auxiliares.

O empresário Herman Cardenas, dono da Davati, reconheceu em entrevista à Folha que a empresa não tinha à mão nenhuma das doses oferecidas ao governo brasileiro. Ele afirmou que a empresa seria apenas uma facilitado­ra do negócio entre a fabricante e o ministério.

Para os senadores, o relato de Cristiano reforça a tese de que a Saúde abriu a porta para atravessad­ores com ofertas inviáveis de vacinas enquanto rejeitava a compra de imunizante­s diretament­e com fabricante­s como a Pfizer.

O líder do governo no Senado pediu que a CPI não responsabi­lize o governo por “atos praticados por um ou outro servidor”.

Para o senador governista Jorginho Mello (PL-SC), a gestão Bolsonaro se livrou de golpistas. Ele também manifestou constrangi­mento pelos diálogos da Davati com o ministério, e pediu maior atenção da pasta. “Não é possível que pessoas que não representa­m nada, vendedores informais, tentaram dar um golpe no governo. Ainda bem que não saiu ‘um pila’”, disse Jorginho.

Presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM) cobrou que o governo responsabi­lize ao menos Elcio Franco, coronel da reserva, ex-secretário-executivo da Saúde e atual assessor da Casa Civil, que recebeu o grupo da Davati.

“Para o bem do país, um cidadão como Elcio Franco não pode estar na antessala do presidente mais. Não pode passar a mão em cima de uma pessoa que brincou com a vida de pessoas negociando vacinas fantasmas”, disse Aziz.

O grupo de representa­ntes da Davati ainda ofereceu 200 milhões de doses da vacina da Janssen ao ministério, em email de 15 de março enviado a Franco, mas a negociação não foi para frente.

A primeira agenda no ministério com representa­ntes da empresa ocorreu em 22 de fevereiro, com o então diretor da Imunização e Doenças Transmissí­veis, Lauricio Monteiro. Depois, em 26 de fevereiro, Dominghett­i esteve com Roberto Dias no ministério, na data seguinte ao jantar em que houve o suposto pedido de propina.

A última reunião foi feita em 12 de março, quando Franco recebeu de Cristiano e seus parceiros a oferta da Davati.

Segundo o vendedor, Franco não sabia das tratativas anteriores feitas com Dias. O militar e mais dois auxiliares presentes na reunião ficaram com “cara de paisagem”, descreveu Cristiano. “Tipo assim: ‘Não estamos sabendo o que está acontecend­o aqui, dentro do ministério.”’

Cristiano afirmou à CPI que parecia haver duas portas de entrada para negociar as vacinas na Saúde: Dias e Franco.

“Havia dois caminhos no ministério, aparenteme­nte. Um era via Elcio Franco, e outro pelo Roberto Dias. O caminho que ele [Dominghett­i] tentou via Roberto Dias aparenteme­nte não prosseguiu por conta de algum pedido que foi feito lá”, disse Cristiano.

Ele afirmou que a conversa com Roberto Dias foi intermedia­da pelo coronel da reserva Marcelo Blanco, exassessor de Dias. Para Cristiano, Blanco tinha posição “dúbia”, pois parecia seguir assessoran­do o ex-chefe.

A testemunha da CPI chegou a negar que sabia do suposto pedido de propina. Primeiro, ele disse que soube, após o jantar de 25 de fevereiro, somente que havia cobrança para “comissiona­mento” do grupo de Blanco e Odilon, um empresário que ele não soube informar o sobrenome.

Depois ele confirmou à CPI que ouviu, em 12 de março, sobre a suposta cobrança de propina no jantar com Dias.

Já a conversa com Franco, segundo Cristiano, foi facilitada por Helcio Bruno, também coronel da reserva e presidente do Instituto Força Brasil.

A intermedia­ção entre a Davati e o governo Bolsonaro ainda era feita pela Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitári­os), uma ONG evangélica presidida pelo reverendo Amilton Gomes de Paula.

O grupo da Senah prometia amplo acesso ao governo federal, inclusive ao presidente e à primeira-dama, Michelle Bolsonaro, conforme mensagens registrada­s no celular de Dominghett­i.

Em áudios registrado­s no telefone e recolhidos pela CPI da Covid, Cristiano mostra desconfian­ça sobre o grupo do reverendo. “Esses caras não são sérios, esse pessoal do reverendo é pilantra. Não tem acesso a ninguém, o reverendo não tem influência alguma com ninguém”, disse ele em gravação de 5 de abril.

Cristiano ainda negou à CPI que orientou Dominghett­i a expor o áudio que cita o deputado Luis Miranda (DEMDF), pivô de denúncias de irregulari­dades na compra da vacina Covaxin.

“Excelência, eu estava assistindo à oitiva dele aqui e vou ser bem sincero para o senhor. Quando ele estava aqui no meu lugar, quando ele puxou o celular, colocou o áudio e apontou o deputado, eu juro que eu quase tive um infarto porque eu falei: não tem nada a ver”, afirmou Cristiano na CPI nesta quinta.

Cristiano também mudou a versão à CPI sobre o pedido para receber o auxílio emergencia­l do governo federal.

Primeiro, ele disse que “uma colega” havia feito a inscrição dele no programa, “porque ela viu que eu estava passando dificuldad­es para pagar as contas naquele momento”. Depois de intervalo e conversa com seu advogado, ele reconheceu que era o autor do pedido para receber a ajuda.

O empresário recebeu R$ 4.200 de ajuda em 2020 pelo programa direcionad­o a famílias que ficaram mais vulnerávei­s na pandemia.

“Quero manifestar meu desconfort­o com diálogos que foram mantidos entre representa­ntes da Davati com servidores públicos e ex-servidores públicos Fernando Bezerra (MDB-PE) líder do governo no Senado

“Para o bem do país, um cidadão como Elcio Franco não pode estar na antessala do presidente mais. Não pode passar a mão em cima de uma pessoa que brincou com a vida de pessoas negociando vacinas fantasmas Omar Aziz (PSD-AM) presidente da CPI da Covid

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Pedro Ladeira/Folhapress O representa­nte da Davati Cristiano Carvalho depõe na CPI da Covid

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