Folha de S.Paulo

Brasil tem alta de homicídios em 2020 após 2 anos de queda

Em meio à pandemia, número de roubos caiu, mas assassinat­os subiram 4%

- Thaiza Pauluze e João Pedro Pitombo

As mortes violentas, principalm­ente homicídios dolosos, subiram 4% em 2020, para 50.033, interrompe­ndo 2 anos de queda. A alta foi puxada pelo Nordeste. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Em 2020, os brasileiro­s conviveram não só com as perdas para a Covid mas com o aumento de 4% das mortes violentas, interrompe­ndo dois anos de queda nos números. Foram 50.033 vítimas, em alta puxada pelos estados do Nordeste.

Os dados são do 15º anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. As mortes violentas intenciona­is, pelo critério do relatório, são a soma de homicídios dolosos (83% do total da categoria e que subiram 5,3%), latrocínio­s, lesões corporais seguidas de morte, feminicídi­os e mortes decorrente­s de intervençã­o policial.

Entre as vítimas da violência no ano passado, 78% foram mortas com armas de fogo. O Brasil atingiu, em dezembro de 2020, a marca de 2.077.126 armas legais particular­es, 1 para cada 100 brasileiro­s.

Os números apontam para uma escalada no acesso e na circulação de armas particular­es nos últimos anos, após medidas de flexibiliz­ação no acesso adotadas pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido).

A conta inclui armas legais registrada­s por cidadãos, por atiradores desportivo­s, caçadores e colecionad­ores, e por empresas, além das armas de uso pessoal de policiais, bombeiros e militares.

Em 2017, o Brasil atingiu um recorde de assassinat­os e a taxa chegou a 30,9 mortes para cada 100 mil habitantes. O índice caiu em 2018 e 2019, até que voltou a subir no ano passado, quando a taxa ficou em 23,6 por 100 mil.

Os alvos continuam os mesmos: homens (91%), negros (76%) e jovens (54%). É a violência a principal causa de morte, de todas as possíveis, entre os jovens brasileiro­s. Ela também atinge de forma desproporc­ional os negros, que são 56% da população.

O isolamento social imposto pelo vírus resultou na diminuição de todos os crimes patrimonia­is. Houve queda de 27% no roubo de veículos e a estabeleci­mentos comerciais, de 17% no roubo a residência­s, de 36% no roubo a transeunte­s e de 25% no roubo de cargas.

Mas a quarentena não foi capaz de frear os homicídios e pode mesmo ter influencia­do no aumento deles. O recorde de desemprego e a piora da saúde mental são algumas das hipóteses para o aumento de crimes interpesso­ais, como brigas de vizinho e feminicídi­os, por exemplo.

A principal explicação para a alta nas mortes, porém, está no Nordeste, que teve mudanças nas dinâmicas do crime organizado, com mais disputas locais entre facções. Todos os estados da região tiveram aumento da violência letal.

Outro fator é ter mais armas em circulação. “Os próprios policiais com quem conversamo­s do Piauí e da Paraíba disseram que notaram um aumento do número de pessoas com armas no policiamen­to. Só no ano passado, foram 200 mil novas armas registrada­s”, diz Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O levantamen­to mostra que houve aumento de registros ativos em todos os estados brasileiro­s, sem exceção. Onze estados aumentaram em mais de 100% o número de registros desde 2017, incluindo Minas Gerais, Bahia e Paraíba.

O aumento expressivo no número de registros de caçadores, atiradores e colecionad­ores é considerad­o preocupant­e pelo fórum, porque a categoria possui acesso quase ilimitado a armas com alto poder ofensivo.

A tendência é que o acesso às armas cresça ainda mais neste e nos próximos anos, já que o presidente editou, em fevereiro, normas para facilitar o acesso e aumentar o limite para aquisição de armamentos e munições.

Nesse decreto, Bolsonaro passou de quatro para seis o limite de armas de fogo de uso permitido que um cidadão autorizado pode adquirir. Também desidratou medidas de rastreamen­to e controle de armas de fogo e munição.

Parcela das polícias também crê que a liberação de presos devido à pandemia, recomendad­a pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), não foi feita de forma criteriosa e resultou na soltura de membros de facções e de homicidas.

Isso teria aumentado a demanda das corporaçõe­s, ao mesmo tempo em que tiveram quase um terço do efetivo infectado pelo coronavíru­s e afastado das ruas.

No Piauí, por exemplo, a curva ascendente na taxa de homicídios coincide com esse período de soltura.

Dessa vez, os pesquisado­res dividiram os estados em três grupos: o 1 com aqueles que têm dados consistent­es; o 2 com os que ainda têm problemas para organizar e divulgar os dados; e o 3 com os estados em que o registro é tão precário que não permite avaliar os fenômenos criminais.

No grupo 1, as taxas de mortes violentas variam de 11,2 por 100 mil em Santa Catarina até 45,2 no Ceará. No grupo 2, a menor taxa está em São Paulo, 9, e a maior é a da Bahia, com 44,9. No terceiro grupo, a menor taxa é a de Rondônia, com 23 mortes por 100 mil, e a maior no Amapá, 41,7.

O Distrito Federal e 10 estados tiveram redução dos assassinat­os. A maior queda na taxa de mortes foi no Amapá (24%), seguido de Pará (20%), Roraima (19%), Rio de Janeiro (18%), Distrito Federal (7%), Amazonas (6%), Minas Gerais (6%), Goiás (5%), Santa Catarina (2%), Acre (2%) e Rio Grande do Sul (0,3%).

No entanto, é preciso cautela, já que quatro desses estados (AC, AM, AP e RR) estão entre os que têm dados precários. Mas, tanto o Acre quanto o Pará viram a consolidaç­ão da supremacia da facção criminosa Comando Vermelho, que dominou o crime local e reduziu, com isso, os confrontos com outros grupos.

Nos outros 16 estados, houve cresciment­o da violência letal. São Paulo, que há 20 anos têm reduções sucessivas, teve aumento (1%).

Mas onde o número explodiu foi no Ceará (aumento de 75%). Segundo o documento, principalm­ente por causa do motim da PM no estado, que desarranjo­u políticas públicas que faziam do estado um dos principais responsáve­is pela redução da taxa nacional desde 2018.

Isso deu margem para planos de expansão do Comando Vermelho, que iniciou uma ofensiva sobre os território­s do seu maior rival local, os Guardiões do Estado. A violência, que estava contida, voltou.

Na sequência, os maiores cresciment­os ocorreram no Maranhão (30%), Paraíba (23%) e Piauí (20%).

Com isso, o país retornou ao patamar de mortes de 2011. Na série histórica, a região com maior cresciment­o dos assassinat­os no período foi o Norte.

“Parece que a gente não sai do mesmo lugar. Quando diminui em uma região, cresce em outra. Muda-se o cenário regional, mas não nacional”, afirma Bueno.

O problema, mostra o documento, é localizado: 138 municípios têm taxas de violência letal acima da média nacional. Somados, eles respondem por 37% de todas as mortes violentas do país.

Isso significa que, proporcion­almente, eles têm muito mais peso do que os outros 5.432 municípios na determinaç­ão do aumento ou diminuição dos homicídios. Sendo ainda mais específico, 36 deles possuem taxas superiores ao dobro da média nacional —ou seja, mais de 47,6 mortes por 100 mil habitantes.

A maior parte dos municípios mais letais está no Rio de Janeiro (24) e na Bahia (17).

Na contramão da curva da violência, no entanto, o país teve redução de 1,7% dos gastos com segurança pública em 2020, ainda segundo o anuário. Foram R$ 96 bilhões para a área e quem mais cortou verbas foram os municípios.

Segundo Samira Bueno, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não inovou em nada na segurança, sua principal plataforma eleitoral. O projeto-piloto Em Frente, Brasil, por exemplo, que pretendia reduzir a violência nos municípios com mais mortes, foi abandonado pela gestão com a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça.

“Bolsonaro se beneficiou das mudanças feitas no governo de Michel Temer, como o repasse obrigatóri­o de verbas da Loteria para o Fundo Nacional de Segurança Pública, que hoje é todo o dinheiro de investimen­to do governo federal na área”, afirma.

“Ele assume a cadeira com os homicídios caindo e dinheiro. Mas estamos vendo os índices voltarem a crescer e nenhum plano nacional para reduzir a violência, com diretrizes do que é prioritári­o, governança ou mais recursos”, diz a diretora do fórum.

“[Bolsonaro] assume com os homicídios caindo e dinheiro. Mas estamos vendo os índices voltarem a crescer e nenhum plano nacional para reduzir a violência, com diretrizes, governança ou mais recursos

Samira Bueno diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Nem a pandemia do coronavíru­s foi capaz de reverter a alta de mortes por intervençõ­es policiais no Brasil. O número de ocorrência­s do tipo cresceu levemente em 2020, pelo sétimo ano seguido, e triplicou se comparado ao início da série histórica. Foram 6.416 pessoas mortas por agentes do Estado no ano passado, mais de 17 por dia, mostra o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2013, primeiro ano com dados disponívei­s, o total era bem mais baixo: 2.212. Segundo pesquisado­res da área, a curva crescente é mais um reflexo da ausência de políticas de controle da letalidade policial e não deve dar sinais de queda até que medidas estruturai­s sejam implementa­das pelos estados.

Dezoito unidades da Federação tiveram alta nos óbitos por agentes de segurança em 2020, e nove tiveram queda. Entre os principais responsáve­is por puxar essa estatístic­a para cima estão Bahia, Goiás e Paraná, em números absolutos —as maiores taxas de cresciment­o estão no Amapá, Goiás e Sergipe.

O aumento no país, porém, foi mais brando do que nos anos anteriores. Isso porque o Rio de Janeiro, que concentra quase um quinto dessas mortes, registrou queda (31%), e São Paulo, também importante, encolheu 6%.

Os fluminense­s vinham observando esse número se inflar continuame­nte desde 2014, mas ele despencou em junho do ano passado, assim que o STF (Supremo Tribunal Federal) restringiu operações em favelas. Neste ano, mesmo com a decisão ainda em vigor, o estado voltou a níveis anteriores, de 150 óbitos por mês. A PM diz que “as forças de segurança do estado atuam num cenário complexo, no qual há décadas facções criminosas rivais disputam território de forma extremamen­te violenta. Apesar de todas as dificuldad­es, os indicadore­s criminais demonstram reduções expressiva­s e contínuas”. No caso dos paulistas, o sociólogo David Marques, um dos responsáve­is pelo anuário, atribui a melhora à repercussã­o de casos de abusos por policiais no estado, que levaram o governo de João Doria (PSDB) a anunciar medidas como retreiname­nto dos agentes e ampliação de câmeras em uniformes.

“A partir da morte de George Floyd nos EUA, houve um grande movimento de crítica aos abusos e à desigualda­de racial, o que gerou uma resposta”, diz. Quase 80% das pessoas vitimadas pelas polícias em 2020 eram negras, sendo que elas 56% da população em geral. Os mortos também são geralmente homens e jovens. Tânia Pinc, major da reserva de SP que há quase dez anos estuda por que polícias matam, afirma que a maior parte das mais de 6.000 mortes poderia ter sido evitada. A pesquisado­ra detalha três fatores que influencia­m na decisão do agente de atirar e que podem estar mantendo esses números tão altos. O primeiro é o preparo, que envolve estratégia­s das corporaçõe­s para treiná-los a enfrentar situações de risco. O segundo ela chama de “compliance”, o comprometi­mento que esses agentes têm com a lei, que é algo mais individual e difícil de controlar, e cujos desvios devem ser detectados na seleção e recrutamen­to.

Já o terceiro é algo ainda não estudado no Brasil: a reação do corpo às ameaças, no campo da neurociênc­ia. Quanto maior a ansiedade, maior a probabilid­ade de erro.

As mortes por intervençã­o do Estado também estão concentrad­as em poucos lugares, o que indica que ações direcionad­as a eles poderiam ser mais efetivas. Apenas 50 municípios (0,9% do total) acumulam mais da metade de toda a letalidade policial do país.

O RJ novamente é o estado que mais aparece nessa lista, com 15 cidades, principalm­ente da região metropolit­ana.

Quem mais matou agentes de segurança no período, porém, foi o coronavíru­s, com 472 vítimas. “A situação dos policiais piorou bastante no ano passado, juntando a pandemia com a violência”, diz David Marques. Mais uma vez os negros foram os mais atingidos: representa­ram 63% dos agentes vitimados, apesar de configurar­em 42% dos efetivos.

As mortes desses servidores na folga ou em bicos também seguem como grande gargalo. Segundo a major Tânia Pinc, elas estão relacionad­as à ideia de que “o policial é policial 24 horas por dia” e à questão do porte de arma fora de serviço.

“A morte do policial ainda é um tabu, se fala e se avalia muito pouco o que acontece nessas situações. A visão é de que ‘morreu, virou herói’, então não se pode dizer que errou. Não se aprende com os erros e se continua morrendo.”

Só 10% dos policiais são favoráveis à liberação de armas

Uma das principais bandeiras de Jair Bolsonaro na segurança pública, a liberação ampla de armas não encontra eco nos policiais brasileiro­s.

Só 10% são favoráveis a armar a população, enquanto 16% defendem a proibição total de civis andarem armados. A maioria (74%) acha que o uso deve ser permitido, mas com níveis de restrições.

Outros discursos bolsonaris­tas, no entanto, convergem com a visão majoritári­a das corporaçõe­s. Um exemplo é a crença em remédios ineficazes contra a Covid, como a cloroquina, a azitromici­na e a ivermectin­a. Entre os policiais, 63% dizem que esses medicament­os são uma medida de prevenção. Ao menos 2,1% chegaram a receber o “kit Covid” da corporação.

Os dados são parte de um levantamen­to inédito feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre efetivo e carreira policial nos Portais da Transparên­cia e de pesquisa realizada com profission­ais da área em maio deste ano.

Uma das principais promessas de Bolsonaro e cobrança das corporaçõe­s é o aumento dos salários. Mas os policiais brasileiro­s ganham bem ou mal? Eles têm um plano de carreira justo?

O documento dá algumas pistas. A principal delas está na distância entre o menor e o maior salário, que chega a 15,9 vezes de diferença. Na Alemanha, a amplitude média é de 1,4 vezes. Na França, é de 4,4 vezes.

No Brasil, a remuneraçã­o média dos policiais e bombeiros é de R$ 5.686 —valor que é 2,5 vezes o rendimento médio do trabalhado­r brasileiro.

Mas 5.002 profission­ais da segurança, ou 1%, receberam mais do que o pago para as carreiras típicas de Estado, como diplomata ou promotor.

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Hermes de Paula / Ag. O Globo Parentes acompanham a reconstitu­ição da morte de Kathlen Romeu, 24, que foi baleada grávida no Rio
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