Folha de S.Paulo

Cale a boca, golpista! Sem off aqui

Não facultarei a canalhas instrument­os da democracia para que solapem o regime

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

Deixo aqui um recado a militares que eventualme­nte se vejam tentados a manter comigo uma conversa ao pé do ouvido. Não contem com esta coluna, com o blog que mantenho no UOL ou com o programa diário de rádio O É da Coisa, que ancoro na BandNews FM, para ameaçar o processo eleitoral e para fazer a apologia do golpe.

Poderão dizer os golpistas: “E quem precisa de você, Reinaldo? Já temos tantos e tantas para mandar nossos recados. Pare de regular mixaria!”. Sou assim mesmo. Tenho esse lado que alguns hão de considerar meio mixuruca, sabem? Não torno disponível a gente que não presta mesmo as pequenas dimensões do meu quintal. Pela minha cerca, não passarão.

Se houver general, brigadeiro ou almirante da ativa —se for de pijama, topo jogar dominó, mas em horários restritos porque preciso trabalhar; não terei pensão integral, a um déficit multibilio­nário— que estejam dispostos a pregar abertament­e o golpe, com invasão do Congresso e do Supremo, prisão dos parlamenta­res de oposição e dos ministros independen­tes do Supremo, fechamento dos veículos de comunicaçã­o que não sejam terraplani­stas e passopanis­tas... Em os havendo, publico. Mas com nome e endereço. Porque, no mesmo texto, vou defender que sejam presos.

“Ah, é? E quem vai prender?” Pois é, estará lançada a questão. Sei que não servirei de instrument­o dos que pretendem dar um golpe branco. Não facultarei a canalhas os instrument­os de que dispõe a democracia —e a imprensa livre é um deles— para que solapem o próprio regime que lhes garante a fala em off. Não servirei de esbirro de golpistas.

Que diferença há entre dar voz a militares sem rosto que ameaçam o processo eleitoral e publicar offs do PCC, do Comando Vermelho, das milícias ou de grupos terrorista­s que decidissem deixar claro à sociedade quais são as suas reivindica­ções? Quem quer que falasse com esses para revelar artimanhas do mundo criminoso e para denunciar outros bandidos, bem, então o off é não só o caminho aceitável como pode ser o desejável. Desde, é claro, que a publicação fosse precedida da apuração para verificar a veracidade do que dissessem.

Mas seria um erro grotesco —e, portanto, associar-se ao crime— manter uma conversa ao pé do ouvido com marginais, fardados ou não, que decidissem usar o jornalismo para veicular ameaças ou reivindica­ções da “categoria”. O procedimen­to acaba por constituir um dos instrument­os de uma espécie de normalizaç­ão do crime, como se este pudesse fazer parte da nossa rotina e como se, prestem atenção à expressão, no dia seguinte, houvesse amanhãs.

Havendo general que queira dizer em off ou em on que essa conversa de golpe é bobagem, aí podem contar comigo. Pronto! Revelo aqui: dois grandões, com tropas, me dizem que isso tudo não passa de besteira. Se há quem não tenha entendido por que uma coisa é legítima, e a outra não, bem, dizer o quê? Então não entendeu nada e seria inútil explicar. Meu tempo e meu espaço são escassos.

E tanto pior quando essa conversa mole não vem exatamente associada à derrota de Bolsonaro, mas à eventual vitória de Lula. Quase se pode ouvir, nas entrelinha­s, um lamento surdo: “Fosse a terceira via...”. Em certos casos, a dita-cuja vem com nome e sobrenome: “Fosse Sergio Moro”. Um pouco mais de pudor, por favor!

Quanto a Bolsonaro e seu entorno, considere-se: ninguém por ali bate bem dos pinos, mas há método. A foto divulgada nas redes do herói moribundo, mas com ar beatífico, como triunfo do martírio, é uma cola plástica do “Cristo Morto”, de Mantegna (1431-1506). Peço à edição da Folha que reproduza lado a lado as duas imagens. Vejam ali o crucifixo de Dom Fernando José Monteiro Guimarães, arcebispo do Ordinariad­o Militar do Brasil, a abençoar o “Mito”.

Segundo a crença, Cristo morreu na cruz para nos salvar. Bolsonaro escolheu uma política de saúde que já fez quase 540 mil mártires “sem ar, sem luz, sem razão”. E o fez para se salvar. Porque atendia à demanda dos que apoiaram a sua postulação quando ainda era um azarão. Deu o azarão. O urubu pousou na nossa sorte, e o resultado se mede em corpos. Que pesam sobre os ombros dos golpistas.

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