Folha de S.Paulo

Racismo de Mario Frias faz aposta na cortina de fumaça da elite do país

Secretário, que disse que historiado­r negro precisava de ‘um bom banho’, insiste na associação de negros a sujeira

- Felipe da Silva Freitas

Doutor em direito pela Universida­de de Brasília, é pesquisado­r do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo O secretário especial da Cultura do governo do presidente Jair Bolsonaro, Mario Frias, trouxe a público práticas discrimina­tórias que diariament­e atingem negras e negros no país.

Numa rede social, o secretário ofendeu o historiado­r negro Jones Manoel dizendo que ele precisava de “um bom banho”. A expressão é própria do racismo à brasileira que insiste em associar pessoas negras à ideia de sujeira, animalizaç­ão, brutalidad­e, transgress­ão e vadiagem, num script de séculos de violência que tem efeitos políticos letais e bastante perturbado­res.

Horas depois de seu ataque racista, o secretário Mario Frias voltou às redes sociais para prosseguir no ritual de discrimina­ção e disse que não se referia às caracterís­ticas físicas de Jones Manoel, mas às suas ideias —comunistas— que, no dizer do membro do governo federal, careciam de limpeza.

É o conhecido itinerário daquele que ataca e, ao ser chamado de racista, reage responsabi­lizando a vítima e relativiza­ndo a ofensa proferida buscando transferir o debate para o campo da brincadeir­a, da anedota ou de uma mera controvérs­ia interpesso­al.

É um misto de violência, ódio, covardia e perversida­de.

A estratégia discrimina­tória fora sistematic­amente investigad­a por intelectua­is e ativistas dos movimentos negros que, desde a década de 1970, enfatizam o caráter estrutural do racismo e lutam por leis que inibam práticas discrimina­tórias e que instituam mecanismos de apoio e assistênci­a às vítimas de violência racial.

Nos dias de hoje, quando a própria Constituiç­ão Federal repudia o racismo e o trata como crime imprescrit­ível e inafiançáv­el, aconduta de Mario Frias, denegar que teve a intenção de discrimina­r, visa também proteger asi mesmo da lei penal. A estratégia de recorrer às más interpreta­ções do Judiciário brasileiro tem sido recorrente em fazer desconside­rar como crimes práticas racistas e as reclassifi­car como meras injúrias ou arroubos verbais.

Como destaca Thule Pires, professora de direito constituci­onal da Pontifícia Universida­de Católica do Rio de Janeiro ,“aluta antirracis­mo pressupõe uma mudança significat­iva não apenas no referencia­l simbólico que rege as relações sociais, mas também na atuação dos agentes públicos e instituiçõ­es frente à questão”.

A questão subjacente ao ataque do ex-galã do seriado “Malhação”, da TV Globo, é a aposta de que não haverá qualquer censura pública efetiva ante a violência praticada contra negras e negros no Brasil, de modo que sempre parece vantajoso acionar os repertório­s desumaniza­dores para evitar o confronto democrátic­o de ideias e a explicação sobre a pífia gestão que faz agora à frente da Secretaria Especial da Cultura, que acumula denúncias de patrulha ideológica contra artistas e produtores culturais, baixa execução orçamentár­ia e total paralisia em medidas de fomento ao setor de arte e entretenim­ento.

Num contexto de acirrada violência, a prática de Mario Frias refaz o fúnebre caminho das elites nacionais e busca jogar uma cortina de fumaça sobre as responsabi­lidades do governo federal no agravament­o dos problemas vividos pelo povo brasileiro.

É fundamenta­l desfazer essa estratégia e lançar luzes sobre a prática discrimina­tória exigindo responsabi­lização jurídica, política e social por atos dessa natureza.

Atacar os negros e disseminar o ódio nesse contexto se estabelece como um caminho para quem não tem argumentos e não consegue se banhar nas águas libertador­as da igualdade, do respeito e da democracia —passos fundamenta­is para quem deseja tirar de si a sujeira da violência e da discrimina­ção.

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