Folha de S.Paulo

Rapper TyCaçula canta a malícia e a aflição da vida em favela do Rio

Artista carioca de 26 anos faz sucesso no YouTube e lança EP que soa como uma sessão de terapia introspect­iva

- Bruno Calixto

Quando TyCaçula atendeu a ligação para dar início a esta entrevista, o som ao fundo resumiu sua história. Ele começou falando do novo apê de dois quartos, onde mora com a mulher e os três filhos pequenos, com vozes que davam o tom de quem estava do outro lado da linha —um rapper de família.

Numa época em que os grandes nomes do hip-hop fazem da negritude uma causa, ele vai além e traz para as rimas que cativam no YouTube tudo o que vivenciou na infância na Cidade Alta, comunidade em Cordovil, bairro da zona norte do Rio de Janeiro.

A região é considerad­a uma área conflagrad­a, marcada pela presença do tráfico. E tudo isso aparece na obra de TyCaçula, que continua morando lá.

“Meu rap trata da minha situação de vida, nosso terror cotidiano, desde criança ouço hip-hop e trago tudo o que vi na comunidade”, ele afirma.

Aos 26 anos, o franzino TyCaçula é dono de uma música cheia de romance. “Com a mão delicada ela me serve um vinho/ O fino eu recuso pra ficar serin/ É que o seu sorri já gera confiança/ E a desconfian­ça dela gera em mim.”

O primeiro rap surgiu em março do ano passado, como um investimen­to caseiro. “Beijada pelo Sol” fala dos relacionam­entos de pessoas periférica­s, uma love song levada de gírias — “desenrolei, caiu no papo do nego”.

“Decidi fazer rap mais velho, sempre cantei na igreja, mas não era algo forte. Minha mãe me colocou para cantar na igreja dela há uns dois anos, quando percebi que era bom de palavras, mas não sabia se conseguiri­a escrever raps”, diz.

Algum tempo depois da passagem pela igreja da mãe, começou a criar um conteúdo para virar os olhares para o lado contrário ao da “maldade” presente em seu território.

Drogas, crimes e guerra. A música, para ele, tenta tirar os olhos das crianças desse tipo de situação. Segundo Ty, muitos enxergam a favela como só aquilo, que a saída é pegar a mulher mais gata e a moto da hora. É no meio disso que, para o artista, nasce a música.

“Canto para tentar salvar menores que podem me ver como um espelho”, diz. Em falta nas ruas do Rio pela ausência dos bailes funk, a gíria atravessa o jeito de se vestir, falar e andar da favela.

“Do corte de cabelo ao gesto, é o modo que a gente traz o nosso jeito de viver”, ressalta. “Tenho letras sobre política, religião e vida em geral. Gosto muito de criar e compartilh­ar, se Maria Gadú ou Ivete Sangalo me chamasse para cantar, eu faria com classe.”

Depois de meses fazendo rap sobre ter crescido na favela, ele acabou de lançar o EP “Respirando Ódio, Transborda­ndo Amor”, com cinco faixas que soam como um trabalho mais maduro numa sessão de terapia introspect­iva.

A criação mais recente, “JiuJitsu” é uma poesia acústica adocicada e picante. Nesse contexto de criação, o rap, personific­ado por medalhões como o Racionais MC’s, salvou a sua vida, diz ele.

“Uma religião que eu sigo à risca. Para toda parte da vida, existe um verso do Racionais. Não há um favelado que não se identifiqu­e.” E isso inclui as mulheres, uma voz que ecoa cada vez mais alto no hip-hop.

“O rap não tem gênero, nem cor, abraça quem quiser viver da arte. Elas têm que dizer o que precisam dizer”, afirma.

Um símbolo muito forte que atravessa gerações, o fone no ouvido é o passaporte que desvia das coisas “erradas”. “Vou para a casa da minha mãe com o fone, imaginando fatos, corro risco até de sofrer um acidente. Ele salvou minha vida porque trouxe de volta a imaginação da infância.”

Os clipes de TyCaçula são cinematogr­áficos. Mesmo jovem, ele se apresenta como um artista completo e demonstra isso na voz também, com dor e malícia. Ele se consagrou com a love song “2 Contos / Grammy” e também a bomba-relógio “Favela Venceu?”, um trap pesadão, que saiu com um recado claro. “Playboy, eu não tenho guerra com você e sim com as neuroses que tenho que sofrer todos os dias no seu habitat”, ele canta.

Na sua playlist, 99% das faixas são de rap nacional, com destaque para Djonga, Filipe Ret, Mainstreet e Emicida.

“O hip-hop brasileiro está tocando mais do que nunca nas favelas, antes era coisa da burguesia. Isso acabou. É a música número um do país.”

Chegando ao fim da entrevista, uma provocação. O que TyCaçula comporia naquele momento? “Teria um tom agressivo, tom de bronca, esporro”, responde, em alusão à política brasileira. “A gente aqui consegue enxergar a sujeira de longe, estamos acostumado­s com isso.”

E, nessa toada, ele termina retomando que poderia criar os filhos socialment­e consciente­s, para que eles e as outras crianças da Cidade Alta não vejam o que ele viu.

“Minha fonte de choro secou. Podia dizer que vislumbro um Grammy em meu caminho, mas meu maior objetivo é que os jovens da minha comunidade estejam com os seus objetivos alcançados, a favela do futuro com arte, educação, cultura e segurança.”

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Divulgação O rapper carioca TyCaçula, morador da comunidade Cidade Alta

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