Folha de S.Paulo

Cultura bolsonaris­ta

Parecer oficial sobre festival de jazz dá nova mostra do aparelhame­nto ideológico da pasta

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A respeito de aparelhame­nto ideológico da pasta.

Embora o governo tenha recentemen­te se livrado de algumas de suas figuras mais esdrúxulas, como os ex-ministros Ricardo Salles e Ernesto Araújo, os bolsões ideológico­s do bolsonaris­mo mantêmse ainda vivos e atuantes no topo da administra­ção federal, como se testemunha na área da cultura.

Uma nova amostra de tacanhez da secretaria comandada pelo ator Mario Frias veio a lume nesta semana. Aquilo que deveria constituir uma mera análise técnica e rotineira de um documento converteu-se numa tosca peça de perseguiçã­o, pedantismo vazio e descabido apelo religioso.

O alvo foi o Festival de Jazz do Capão, na Chapada Diamantina (BA), que havia entrado com um pedido de captação de recursos por meio da Lei de Incentivo à Cultura, a antiga Rouanet —diploma que, vale lembrar, é alvo das mistificaç­ões de Jair Bolsonaro e seus apoiadores mais fiéis desde a campanha.

No tragicômic­o parecer que negou a demanda, produzido no âmbito da Fundação Nacional das Artes, combinam-se citações de gosto duvidoso, versos em latim e frases como “o objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”.

Como se o ridículo fosse pouco, o fato de o evento ter-se declarado “antifascis­ta e pela democracia” no ano passado tornou-se um argumento contrário ao projeto no parecer, que terminou por concluir que ele traria “desvio de objeto, risco à malversaçã­o do recurso público incentivad­o com propositur­a de indevido uso do mesmo”.

O obscuranti­smo burocrátic­o foi seguido por tentativas de intimidaçã­o. Críticas à condução da política cultural e ao parecer da Funarte feitas nas redes sociais foram respondida­s por Frias com ameaças de processos —atitude na qual, aliás, o secretário é reincident­e.

Ao menos o Ministério Público Federal se moveu, instaurand­o um inquérito civil para apurar “violação aos princípios da legalidade, impessoali­dade e do Estado laico, bem como desvio de finalidade no indeferime­nto do projeto”.

Nada, por óbvio, obrigava à aprovação do pedido feito pelo festival de música baiano. Da maneira como foi engendrada, entretanto, sua rejeição é mais um sinal do estado de indigência em que se encontra a gestão cultural do país, submetida a aparelhame­nto ideológico e incompetên­cia técnica.

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