Folha de S.Paulo

Olimpíada e diversidad­e

- Ana Estela de Sousa Pinto Na Folha desde 1988, foi repórter e editora, em Poder, Mercado e Cotidiano. Hoje é correspond­ente na Europa

Nua, uma filha de taiwaneses canta em chinês no karaokê na sala de seu apartament­o e depois desliza sobre o corpo do namorado, um homem negro. A história se passa no Olimpíadas, em Paris — assim mesmo, no masculino e no plural.

Os amantes multirraci­ais estão numa das 11 torres residencia­is de um conjunto modernista no 13º arrondisse­ment, na margem esquerda do Sena, na capital francesa.

A quadra planejada é o cenário de “Les Olympiades”, do diretor Jacques Audiard, um dos melhores filmes do 74º Festival de Cinema de Cannes, que terminou neste sábado (17).

Cada prédio tem o nome de uma sede dos Jogos (alguns, das edições de inverno). Entre Sapporo, México, Atenas, Helsinki, Cortina d’Ampezzo e Tóquio, Wang procura uma garota para dividir seu apartament­o.

De Londres, Anvers, Roma, Grenoble ou Squaw Valley, surge Camille, nome que na França pode ser masculino —e, nesse caso, é o do personagem interpreta­do pelo francês de origem africana Makita Samba.

Wang esperava uma moça, mas aceita o inesperado e se apaixona por ele.

Entre Olímpia e Oslo, Camille desiste do ensino público e vai gerenciar uma imobiliári­a, onde contrata Nora, com quem tenta um caso mal-sucedido.

De algum lugar desconheci­do —talvez Los Angeles ou Melbourne, dois edifícios que jamais saíram da planta—, a cam-girl Amber Sweet oferece sexo por pagamento, mas para Nora libera o taxímetro, depois seu nome verdadeiro, seu endereço e começa aí um novo romance.

Não só cores de pele, formatos de olho ou afetos se misturam no Olimpíadas. A concepção urbanístic­a do complexo, com apartament­os privados e moradia social de diferentes tamanhos, comércio, escritório­s e ateliês de artistas, gerou uma mistura social permanente.

Em 2016, quando a governador­a de Tóquio veio ao Brasil para a Olimpíada do Rio, falou à Folha sobre seus planos de promover os “Jogos da Diversidad­e”. “Conheça as diferenças, mostre as diferenças” é o lema da 32ª edição olímpica, abertura que Yuriko Koike sempre soube ser difícil numa sociedade que valoriza o “sangue japonês” e resiste à integração.

A governador­a de Tóquio também investiu pesado desde 2013 —quando a megalópole foi escolhida para sede dos Jogos de 2020— para alargar calçadas, rasgar rampas, instalar escadas rolantes no metrô, melhorar a sinalizaçã­o e disseminar o inglês.

Com ferro, concreto e comunicaçã­o, as obras tiraram barreiras e aumentaram acessos. Mas a pandemia e sua interação humana restrita —viagens proibidas, arquibanca­das vazias— levaram à fronteira da impossibil­idade o que já era um desafio cultural.

Paris, que foi sede da Olimpíada em 1924, voltará a sê-lo em 2024. Bem no meio desse centenário, nos anos 1970, inaugurou-se o “caldeirão de diversidad­e” do Olimpíadas.

Se não foi desta vez na vida real, em 2021 os Jogos poderão contar ao mundo histórias de diálogo e integração ao menos no cinema.

Mas o investimen­to de Koike não foi em vão. O exemplo do 13º distrito francês é o de que decisões urbanístic­as afetam a sociedade. Política pública bem planejada e bem executada pode não transforma­r imediatame­nte a capital japonesa no paraíso da inclusão, mas finca no solo as estacas desse edifício.

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