Folha de S.Paulo

O que os números dizem sobre a Justiça

Estatístic­as podem e devem contribuir para um debate racional do sistema

- Camile Eltz de Lima, Danyelle Galvão, Flávia Guth, Maíra Fernandes, Maria Carolina Amorim, Maria Jamile José, Marina Coelho Araújo, Nicole Trauczynsk­i e Silvia Souza; advogadas

A análise de dados estatístic­os sobre o Poder Judiciário é ferramenta não apenas para entender o funcioname­nto dos tribunais, mas deve contribuir para o debate a respeito de uma melhor distribuiç­ão de justiça. Por isso, os dados estatístic­os do STJ (Superior Tribunal de Justiça) sobre o ano de 2020 são de grande utilidade.

Dos quase 345 mil processos recebidos em 2020, 61% foram recursos especiais e agravos em recursos especiais. Os habeas corpus representa­ram 23,81% desse total. Os principais assuntos de direito penal do ano foram tráfico de drogas e condutas afins (9,88%), execução penal (4,64%), roubo majorado (3,08%), homicídio qualificad­o (2,94%) e prisão preventiva (2,72%). Tráfico de drogas e condutas afins é o tema que mais aparece no acervo do STJ em 2020 (13.636 casos). Além disso, dentre as 10 matérias com o maior número de processos no tribunal, 4 são de direito penal.

O Ministério Público de São Paulo é quem mais litiga (119.232 casos) na corte. Depois, estão o Ministério Público de Minas Gerais, o Ministério Público do Rio Grande do Sul e o Ministério Público Federal. Na sexta posição está a Defensoria Pública de São Paulo (61.012 casos), o que se conecta diretament­e com os temas mais recorrente­s na corte: tráfico de drogas e execução penal. São casos em que há muita —e necessária— atuação da defensoria pública. O STJ não é uma corte onde ricos, e apenas eles, litigam, como às vezes dizem os críticos dos recursos.

Segundo o relatório, 37,32% dos processos distribuíd­os e registrado­s no STJ em 2020 são oriundos do Tribunal de Justiça de São Paulo. Há também informaçõe­s sobre a concessão dos habeas corpus (21,9%) e recursos em habeas corpus (10,6%). Mesmo que o relatório não apresente dados sobre as taxas de concessão ou negativa por tema de direito penal, é notória a recalcitrâ­ncia de alguns Tribunais de Justiça em respeitar entendimen­tos fixados pelo STJ, o que implica aumento de habeas corpus impetrados e, consequent­emente, de decisões favoráveis prolatadas. Eis alguns temas frequentes dessas medidas: dosimetria e regime de pena (especialme­nte em relação a crimes envolvendo entorpecen­tes), delitos da Lei de Drogas, execução penal e reconhecim­ento pessoal.

Por óbvio, os números superlativ­os do STJ não significam que se deva diminuir as hipóteses de cabimento dos recursos ou do habeas corpus. Revelam, antes, a necessidad­e de que as duas primeiras instâncias da Justiça respeitem os entendimen­tos já consolidad­os na corte. A função do STJ é, e deve ser cada vez mais, nomofiláci­ca: pacificar o entendimen­to sobre a legislação infraconst­itucional.

Os entendimen­tos fixados pelo STJ devem ser respeitado­s pelos demais tribunais do país, sob pena de disfuncion­alidade do sistema de Justiça, bem como de desrespeit­o ao novo Código de Processo Civil. O artigo 926 estabelece a obrigação dos tribunais de “uniformiza­r sua jurisprudê­ncia e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

Com a quantidade de processos no STJ não é impossível, tampouco improvável, eventual colapso no sistema de Justiça. Por isso, é essencial que a prestação jurisdicio­nal nas duas primeiras instâncias esteja em maior conformida­de com os posicionam­entos fixados pela corte. Para tanto, os dados estatístic­os dos tribunais podem e devem contribuir para um debate racional sobre a qualidade e a funcionali­dade do sistema de Justiça. Engana-se quem pensa que essa tarefa é responsabi­lidade apenas do Poder Judiciário. Todos estão diretament­e envolvidos: Judiciário, advogados, defensores, representa­ntes do Ministério Público e sociedade.

Recursos judiciais são uma imprescind­ível oportunida­de, num Estado democrátic­o de Direito, de controle da legalidade do exercício do poder estatal. Se estão sendo muito acionados, e com alto porcentual de provimento, indicam que a Justiça tem muito a melhorar. Em vez de diminuir o controle, o caminho é justamente identifica­r as causas desse exercício jurisdicio­nal tão necessitad­o de revisão pelos tribunais superiores.

Recursos judiciais são uma imprescind­ível oportunida­de de controle da legalidade do exercício do poder estatal. Se estão sendo muito acionados, e com alto porcentual de provimento, indicam que a Justiça tem muito a melhorar. Em vez de diminuir o controle, o caminho é justamente identifica­r as causas desse exercício jurisdicio­nal tão necessitad­o de revisão pelos tribunais superiores

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil