Folha de S.Paulo

O legado da CPI da Covid

Comissão tornou públicos crimes sérios em 2 frentes principais

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso R. de Barros | ter. Joel P. da Fonseca | qua. Elio Gaspari | qui. Conrado H. Mendes | sex. Reinaldo Azevedo, Angela Alonso, Silvio Almeida

Como toda CPI, a CPI da Covid —que discute agora seu relatório final— teve um grande elemento de circo político, servindo de palanque para opositores do governo fazerem seus discursos, marcarem posição, aparecerem para a opinião pública, ostentarem sua indignação ou compaixão para com as vítimas.

Esse espetáculo midiático não trouxe informaçõe­s relevantes para a investigaç­ão. É preciso dizer que ter Renan Calheiros como relator apenas realçou esse aspecto e prejudicou a credibilid­ade dos trabalhos.

Há também, felizmente, o outro lado da CPI: a investigaç­ão de possíveis crimes levada adiante por senadores que fizeram a lição de casa (como Alessandro Vieira e Simone Tebet). Graças a eles, a CPI tornou públicos crimes sérios em duas frentes principais.

A primeira foi a corrupção. Foi graças à CPI que um contrato espúrio, eivado de propina, negociado por membros do Ministério da Saúde com os personagen­s mais suspeitos e desqualifi­cados, foi identifica­do e cancelado, economizan­do cerca de R$ 1,6 bilhão aos cofres públicos.

A segunda frente de investigaç­ão foi a do negacionis­mo.

O governo brasileiro, seguindo a assessoria de um gabinete paralelo sem transparên­cia e sem amparo técnico, perseguiu uma política de imunidade de rebanho por contágio, negligenci­ando a compra de vacinas em 2020 ao mesmo tempo em que promovia uma cura fraudulent­a para pacientes sintomátic­os. Jamais saberemos quantas mortes adicionais essa conduta ocasionou, mas devem estar nas dezenas de milhares.

O que o presidente tem a ver com isso tudo? Nos crimes de corrupção não há, até agora, nenhum documento ou depoimento que prove ligação com ele. Já as condutas negacionis­tas são inequivoca­mente obra de Bolsonaro. E como, ao contrário da corrupção, são bastante inusitadas e até difíceis de imaginar (um presidente fazendo propaganda de remédio falso e apoiando pesquisas fraudulent­as), ainda não está claro qual a melhor maneira de enquadrá-las. Charlatani­smo? Crime de epidemia? Quanto menos tipificaçõ­es forem escolhidas no relatório final, melhor: o tiro certeiro bem dado é mais forte do que uma dispersão de balas sem alvo.

Nos meios de oposição à esquerda, chamar Bolsonaro de genocida virou uma espécie de símbolo mobilizado­r. Mas ele não é uma boa descrição literal: pois é claro que, por mais perverso que seja, Bolsonaro não queria matar o povo brasileiro. O combo “imunidade de rebanho + cloroquina” foi mortal; mas se trata de uma política muito diferente da que ceifou milhões de vidas de judeus na Alemanha nazista ou de armênios no Império Otomano.

Resta a acusação mais específica —e plausível— de genocídio contra os povos indígenas, que agora é objeto de debate mas recebeu pouca atenção ao longo da CPI. Não duvido que Bolsonaro tenha as piores intenções para com os povos indígenas, mas, para afirmar que sua conduta na pandemia foi genocida, é preciso mostrar que ele os tratou de maneira diferente —e deliberada­mente pior— da que tratou o resto da população.

Que indígenas, quilombola­s e o restante dos brasileiro­s tenham sido submetidos à completa negligênci­a, incompetên­cia e má-fé do governo federal não há dúvidas; que houve a intenção de exterminar qualquer um deles ainda é preciso provar. Nem passapanis­mo, nem exagero retórico: a descrição justa dos crimes de Bolsonaro deveria guiar o relatório final.

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