Folha de S.Paulo

Violência volta à Etiópia 2 anos após Nobel da Paz para premiê

Conflito com rebeldes no Tigré se intensific­a, com relatos de abusos de ambos os lados

- Diogo Bercito

washington As forças do primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed Ali, intensific­aram nesta segunda-feira (18) suas ofensivas contra rebeldes no norte do país, segundo informaçõe­s dos insurgente­s. Um canal controlado por essas forças relatou ataques aéreos em Mekelle, capital da região do Tigré, que está em disputa com o governo central.

O porta-voz do governo inicialmen­te negou a informação, mas horas depois a mídia estatal confirmou uma operação aérea contra estruturas de comunicaçã­o, com medidas para evitar alvos civis.

O episódio indica que Ahmed —vencedor do Nobel da Paz de 2019— e a Etiópia afundam ainda mais em um conflito marcado por saques, estupros e uma violenta fome.

De acordo com as forças do Tigré, o governo de Ahmed já tinha retomado bombardeio­s contra os insurgente­s no dia 10, seguidos por uma incursão terrestre. As autoridade­s centrais, no entanto, têm negado os ataques. Em um cenário de informaçõe­s desencontr­adas, jornalista­s não têm acesso às zonas de combate para acompanhar o desenrolar da crise.

Em suma, a disputa opõe o governo sediado em Adis Abeba e os insurgente­s da TPLF (Frente de Libertação do Povo do Tigré, em inglês). Mas chamar a TPLF só de insurgente borra parte do enredo.

Com a queda do ditador Mengistu Haile Mariam em 1991, o grupo liderou a coalizão que governou a Etiópia até a chegada de Ahmed, em 2018. As quase três décadas de poder da TPLF foram marcadas por autoritari­smo e casos de corrupção. Ou seja, essa frente está longe de ser novata ou uma força historicam­ente marginaliz­ada na política.

Ahmed chegou ao cargo em meio a protestos populares e, de forma vista como promissora, passou a implementa­r reformas liberais no país. Rapidament­e, porém, entrou em atrito com a TPLF. Para os líderes da região do Tigré, os projetos visavam à centraliza­ção do poder e, portanto, à perda de autonomia regional —um dos pilares políticos das últimas décadas no país.

“Essa é uma disputa pelo poder em Adis Abeba camuflada de embate étnico”, diz o comentaris­ta independen­te Filmon Zerai, especializ­ado na região do Chifre da África. “Apesar dos clamores por autodeterm­inação, essa é a continuaçã­o de décadas de atrito entre as classes dominantes.”

O conflito atual começou em novembro, quando Ahmed acusou os rebeldes do Tigré de atacar as forças do governo central e, como resposta, lançou uma série de ofensivas contra a região. A TPLF reagiu rapidament­e e não apenas retomou o controle do Tigré como avançou nas regiões vizinhas de Amhara e Afar.

O governo central declarou, então, um cessar-fogo unilateral. Impôs, ao mesmo tempo, restrições ao acesso humanitári­o às zonas controlada­s pelos insurgente­s. Foi em parte em resposta a essa situação que as forças do Tigré retomaram os embates em julho, explica William Davison, analista-sênior do Internatio­nal Crisis Group para a Etiópia.

Os ataques da TPLF, por sua vez, fizeram com que fosse ainda mais improvável que o governo arrefecess­e o cerco às regiões rebeldes no norte.

Ao tomar posse para seu segundo mandato, após uma lavada eleitoral, o premiê prometeu “defender a honra” da Etiópia, em vez de atuar para desescalar o conflito. Em certa medida, a vitória nas urnas encoraja a retomada dos embates, segundo Davison. Ahmed tem o apoio da população e das elites para avançar.

O envolvimen­to do premiê em um conflito tão violento pode até surpreende­r fora da Etiópia, já que o político tinha vencido o Nobel da Paz em 2019. “O comitê do prêmio parece ter sido ingênuo sobre a trajetória política de Ahmed e as circunstân­cias políticas da Etiópia”, diz.

Na ocasião, o primeiro-ministro foi celebrado por um acordo de paz que encerrou um conflito de duas décadas com a Eritreia. Só que aquela disputa era motivada, entre outras coisas, por uma questão territoria­l entre o Tigré e o país vizinho. Ainda assim, a frente foi escanteada na negociação. “Sempre foi provável que haveria problemas.”

A opinião internacio­nal mudou desde 2019. E, ao contrário da administra­ção americana anterior, o governo de Joe Biden tem criticado o político etíope. É possível, segundo Davison, que os EUA imponham sanções a comandante­s dos dois lados do conflito nas próximas semanas.

Só que, no meio-tempo, a situação pode se deteriorar. Quase 2 milhões de pessoas já foram deslocadas pelo conflito e, segundo a ONU, 5 milhões precisam de ajuda humanitári­a. Centenas de milhares estão em condição próxima à da fome —nos anos 1980, a Etiópia era um dos símbolos da desnutriçã­o no mundo e viveu um desastre que deixou cerca de 1,2 milhão de mortos.

Não há, por ora, indícios de que Ahmed queira desacelera­r a crise. Pelo contrário. Recentemen­te, o premiê expulsou sete funcionári­os de ajuda humanitári­a da ONU, acusando-os de se alinhar com os insurgente­s do Tigré. A TPLF, igualmente acusada de abusos no confronto, incluindo estupros, tampouco tem feito aberturas para alguma negociação de paz.

O caminho para a resolução do conflito ainda é incerto. Um dos grandes entraves, de acordo com Davison, é o território oeste de Tigré. Forças aliadas a Adis Abeba tomaram essa região, que a TPLF reivindica como sua.

“Esse é o maior risco de escalada”, afirma o analista. Em especial se o Sudão, vizinho deste território, também for tragado para o conflito.

“Essa é uma disputa pelo poder em Adis Abeba camuflada de embate étnico Filmon Zerai comentaris­ta independen­te especializ­ado na região do Chifre da África

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