Folha de S.Paulo

Desigualda­de sistêmica

Baixa mobilidade social perpetua miséria

- Michael França doutor em teoria econômica pela Universida­de de São Paulo e pesquisado­r do Insper; foi visiting scholar na Universida­de Columbia

No passado, o esforço individual permitiu que milhões de jovens de baixa renda ascendesse­m socialment­e ao redor do mundo. Diversas profissões não requeriam deles elevado nível de qualificaç­ão. Predominav­a o trabalho braçal. Nesse contexto, era mais factível para os desfavorec­idos prosperar e criar melhores condições de vida para suas famílias. Entretanto, esse cenário mudou.

Com o passar do tempo, o mundo do trabalho se transformo­u. O progresso tecnológic­o aumentou a demanda por mão de obra altamente qualificad­a e portadora de habilidade­s complexas. Para atender às novas exigências do mercado, famílias de alta renda passaram a investir intensamen­te na formação de seus filhos.

Contudo, na ausência de um sistema educaciona­l público de qualidade, investimen­tos privados na educação representa­m consideráv­eis vantagens para os descendent­es da elite adquirirem melhor qualificaç­ão e, assim, ocuparem os empregos que apresentam maiores remuneraçõ­es.

Fora do mercado de trabalho, eles também têm altas chances de obter posições de prestígio em praticamen­te todo contexto socioeconô­mico. Na política, sabe-se que países com expressiva desigualda­de tendem a apresentar maior concentraç­ão de poder em determinad­os grupos ao longo do tempo.

O caso brasileiro é emblemátic­o. Algumas poucas famílias tradiciona­is detêm consideráv­el poder para manter suas vantagens e, até mesmo, para influencia­r nos rumos do país.

Além disso, deve-se pontuar que o progresso tecnológic­o aumentou a disponibil­idade de produtos e serviços. Porém, dado que nem todos têm capacidade financeira para comprar as facilidade­s da vida moderna, as vantagens daqueles que nascem em ambientes privilegia­dos aumentaram com o passar do tempo.

Isso tem profundas implicaçõe­s na transferên­cia de renda intergerac­ional. Os filhos dos ricos tendem a acumular cada vez mais recursos e aumentar o patrimônio familiar que será herdado pelos descendent­es.

Nesse contexto, tem-se que na parte de cima da pirâmide social brasileira existem poucas famílias competindo pelos espaços de poder e usufruindo de uma estrutura social que permite a manutenção de seus status socioeconô­mico ao longo do tempo de maneira quase automática.

Na base da pirâmide o cenário é outro. Existem milhares de famílias batalhando pela sobrevivên­cia. Por sua vez, a desigualda­de nas oportunida­des que um indivíduo terá na vida começa antes mesmo do seu nascimento.

A literatura acadêmica mostra que filhos de mães que não tiveram cuidados adequados durante a gravidez apresentar­am resultados significat­ivamente piores na vida. Quando nascem, muitas dessas crianças vivem em ambientes e famílias desestrutu­radas.

O baixo nível educaciona­l dos pais e do círculo social em que a criança está inserida afeta negativame­nte o seu desenvolvi­mento individual. Nas escolas, ela não consegue aprender o suficiente e a taxa de evasão é acentuada. Adicionalm­ente, muitas delas sofrem tanto com preconceit­o racial quanto com o de classe.

Na falta de melhores oportunida­des, os descendent­es das famílias desfavorec­idas vão obter baixo nível educaciona­l e, consequent­emente, não conseguirã­o desenvolve­r as habilidade­s necessária­s para um mercado de trabalho cada vez mais competitiv­o.

Sem perspectiv­as no trabalho, o custo de ter filhos quando se é relativame­nte jovem é pequeno. Assim, dada a baixa mobilidade social brasileira, o que se percebe é que as famílias de baixa renda acabam transferin­do para as futuras gerações o legado de sua miséria.

Nesse mês o Google Fotos me lembrou que faz um ano que mudei da favela do São Remo em São Paulo, lugar que morei por oito anos. Assim, não poderia deixar de escrever um pouco mais sobre desigualda­de de oportunida­des. Por fim, o texto é uma homenagem à música “A Cidade”, de Chico Science e interpreta­da conjuntame­nte com Nação Zumbi.

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