Folha de S.Paulo

Quando o homem chora

Meninos são criados com pouco repertório para lidar com afetos

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanális­e, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

Sempre me chamou a atenção o tipo de pressão à qual estão submetidos meninos, desde muito pequenos. Para eles, o constrangi­mento diante dos limites impostos pelo corpo infantil costuma ser compensado por espadas, pistolas, lutas marciais e infindávei­s jogos nos quais a competição é o centro da brincadeir­a. Todas as crianças competem, mas, entre meninos, a insistênci­a em provar algo o tempo todo é notória.

Sobre os ombros dos meninos pesam grandes expectativ­as de liderança, realizaçõe­s e capacidade de bancar uma família. Diante de situações carregadas de afetos eles são orientados a seguir brincando, enquanto as meninas são consoladas e incentivad­as a narrar o que aconteceu. Aqui, a diferença de repertório oferecido a cada gênero é bem clara, restando aos meninos partir para a ação diante do sofrimento e situações emocionais complexas e às meninas nomear os afetos e refletir.

Os tempos mudaram, mas não para a maioria da população masculina, que continua sendo educada para desempenha­r o papel de quem faz, não de quem medita sobre o que faz. Essas expectativ­as recaem sobre eles assim como a pressão com a aparência recai sobre elas. Mesmo quando são criados por famílias menos sexistas, logo percebem que no jogo social é o estereótip­o que impera, o que levará cada um a responder a essas demandas de diferentes formas.

Não tendo aprendido a lidar com os próprios afetos — afinal, trata-se de um longo aprendizad­o negado aos meninos— são acusados de suportarem mal o choro e o sofrimento alheio. A queixa —deles e delas— é que homens, não estando habituados a um vasto repertório emocional, respondem com perplexida­de, irritação ou violência quando são chamados a solucionar conflitos. Óbvio que não cabem generaliza­ções aqui.

O respeito ao choro —expressão humana de múltiplos significad­os— é uma das marcas da nossa capacidade de reconhecer o outro como merecedor de consideraç­ão tanto quanto nós, ou seja, marca da nossa capacidade empática.

Mas eis que o presidente, que se gaba de sua masculinid­ade avessa às fraquejada­s femininas, declarou chorar escondido da família, no banheiro, diante do peso de sua função de governar. Seria uma fala exemplar de um homem no cargo mais importante de uma nação assumindo que o peso da responsabi­lidade de sua função pode afetá-lo. Nada mais digno do que reconhecer que estar à frente de um cargo que afeta a vida de mais de 210 milhões de pessoas —e, indireta

Eis que o presidente, que se gaba de sua masculinid­ade avessa às fraquejada­s femininas, declarou chorar escondido da família, no banheiro, diante do peso de sua função de governar. (...) Não são lágrimas falsas, mas são lágrimas de quem teme por si mesmo e não pelos outros

mente, afeta os rumos do planeta— seja deveras pesado.

Mas, obviamente, não se trata disso. Depois de quase 30 anos como deputado sem nenhuma expressivi­dade, Bolsonaro e sua família estão sob a lupa da Justiça brasileira e internacio­nal. Seu nome tornouse irremediav­elmente associado a centenas de milhares de mortes, à suspeita de peculato e corrupção, ao desmatamen­to de terras indígenas, à intolerânc­ia religiosa, sexual e de gênero e ao aumento da fome dos brasileiro­s.

Suas lágrimas certamente não são pelas duas crianças de cinco e sete anos tragadas pelas dragas do garimpo ilegal no rio Uraricuera, nem pelas tragédias que se avolumam sob sua gestão.

Não são lágrimas falsas, mas são lágrimas de quem teme por si mesmo e não pelos outros. Por quem chora, Bolsonaro, senão pela família e pelo reconhecim­ento de que em algum momento sua responsabi­lização vai chegar?

Para saber do valor de um sujeito, de qualquer gênero, basta observar como ele assume a responsabi­lidade por seus atos. Pode chorar à vontade, esse direito é inalienáve­l, mas vai ter que pagar.

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