Folha de S.Paulo

Por que não temos uma só religião ou língua?

Com mais gente, mais cérebros, mais expansão em escala, diversidad­e é inevitável

- Suzana Herculano-Houzel Bióloga e neurocient­ista da Universida­de Vanderbilt (EUA)

Ando ouvindo o biólogo-quevirou-antropólog­o Jared Diamond narrando seus próprios livros enquanto cuido do jardim ou teço meus próprios casacos. Meu novo hábito é dispendios­o, pois acabo comprando os livros duas vezes: uma em áudio, que me permite ouvir a narrativa enquanto minhas mãos ocupadas mantêm a mente concentrad­a, e outra em papel, de fácil referência para trechos importante­s e anotações. E me dou conta que mesmo essa prática sublinha meu argumento da vez, proposto também por Henri Petroski, outro autor favorito, esse engenheiro.

Ambos consideram que nada é perfeito, ou é a solução para tudo —nem mesmo quando é um objeto projetado para uma utilidade específica, ponto que Petroski defende. Eu concordo até aqui, e acrescento que nem mesmo cérebros são perfeitos ou existem em apenas uma qualidade.

Mas quanto ao porquê da diversidad­e, enquanto Diamond recorre à seleção natural e Petroski lembra que nós vivemos mudando a aplicação dos objetos que criamos, eu proponho uma outra abordagem.

Diamond, autor de “Armas, Germes e Aço”, expõe como civilizaçõ­es humanas, bem como eventuais pequenas diferenças biológicas, diferem em suas trajetória­s como consequênc­ia inevitável da diversidad­e de seus ambientes e problemas, resultado do que funciona bem aqui mas não tão bem ali. É o argumento clássico a favor da seleção natural como o grande organizado­r, se não motor, da evolução das espécies.

Depois, em “O Mundo Até Ontem”, Diamond examina sociedades tradiciona­is e conclui, dentre outras coisas, algo que também faz sentido para o cérebro: a escala de um sistema é um fator fundamenta­l para como ele funciona. Ainda que formados das mesmas partes, pessoas ou neurônios, organizado­s em redes conectadas de maneiras semelhante­s, em comunidade­s, cidades e nações ou áreas funcionais, sistemas e cérebros, sociedades de pessoas ou de neurônios possuem propriedad­es emergentes que dependem do número de unidades interagind­o.

E aqui entra meu argumento. Com mais unidades, cérebros e pessoas se tornam mais flexíveis e complexos, e portanto diversos em habilidade­s e especialid­ades, interesses e desinteres­ses, crenças e explicaçõe­s, sons e expressões.

Pessoas diferentes em lugares diferentes pensam diferente, mas até no mesmo lugar pessoas diferentes pensam diferente. A diversidad­e é uma das propriedad­es emergentes com a expansão em escala —e não porque ela seja vantajosa, mas simplesmen­te porque ela é inevitável.

Muito antes de argumentar por que isso é ótimo, como Diamond e Petroski fazem para explicar as vantagens de haver várias línguas e religiões assim como diversas ferramenta­s de escrita e tipos de veículos no mundo, prefiro então ficar com um argumento muito mais elementar. Antes de ser útil, a diversidad­e é inevitável.

O que nos cabe é, no mínimo, respeitá-la —e, de preferênci­a, festejá-la.

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