Memória e linguagem se cruzam na obra do palestino Mahmud Darwich
Escritor renomado une lembranças políticas e fatos banais em romance recém-lançado no Brasil
washington O narrador quer passar um café, mas a manhã chegou queimando com uma febre de metal. Do lado de fora, escreve, o ferro uiva enquanto Israel bombardeia Beirute. A cidade vive um inferno, naquele dia de agosto de 1982, um dos ápices da guerra civil libanesa. Ele quer passar um café.
A abertura de “Memória para o Esquecimento” já impacta o leitor. Serve de lembrete da força do autor, Mahmud Darwich, um mestre nessa fusão entre rotina e política.
No mundo de fala árabe, Darwich dispensa introduções. É o autor palestino de maior renome —e um dos símbolos da causa nacional. Darwich, porém, é ainda desconhecido no Brasil. Em parte, porque até recentemente não havia uma tradução sistemática dele para o português.
O cenário está mudando com a recém-fundada editora Tabla, que assumiu a missão de introduzir Darwich no país. No ano passado, lançou “Da Presença da Ausência”, com tradução de Marco Calil. No ano seguinte, “Onze Astros”, vertido por Michel Sleiman.
“Memória para o Esquecimento”, traduzido por Safa Jubran, é a terceira obra de Darwich a chegar ao Brasil num período de pouco mais de um ano. “O que a gente tem pelo Darwich é um fervor”, diz a editora Laura di Pietro. “Ele não é um poeta de quem a gente quer fazer só um livro.”
Darwich nasceu na vila palestina Al-Birwa em 1941. Testemunhou, em 1948, a criação do Estado de Israel e a expulsão de milhares de palestinos. Por seu ativismo na Organização para a Libertação da Palestina, acabou associado à causa palestina. Morreu em 2008.
Seus poemas, como “Carteira de Identidade”, ainda tocam fundo na região. O texto repete a frase “anote aí, sou um árabe”. No passado, políticos israelenses protestaram contra esses versos.
“Memória para o Esquecimento”, que acabou de sair no Brasil, narra um único dia de 1982 sob os bombardeios israelenses em Beirute, algo que Darwich viveu durante o exílio. Àquela época, Israel cercava a capital libanesa como maneira de pressionar a Organização para a Libertação da Palestina, ali presente.
O drama de passar o café em tal contexto é um exemplo do valor do prosaico na obra de Darwich. “Essa narrativa mostra que continuar com a rotina do cotidiano é um ato de resistência”, diz Jubran, professora da Universidade de São Paulo. Veterana das letras árabes, ela assina há anos as principais traduções da língua para o português.
Jubran afirma que “Memória para o Esquecimento” é o texto em prosa mais maduro de Darwich. É uma narrativa ímpar do cerco e dos ataques israelenses, afirma, costurada com textos bíblicos, crônicas medievais e a saga do povo palestino. O texto pode não estar em versos, mas “exala poesia”.
Outro elemento que chama a atenção é como Darwich consegue costurar sua memória com aquela do coletivo palestino. “Ele faz isso de maneira inédita e magistral”, diz. “A meu ver, é um livro que mereceria um curso.”
Foi exatamente em um curso de Jubran, aliás, que Darwich cativou Calil. O tradutor de “Da Presença da Ausência” ouviu a professora declamar em sala de aula o poema “Serás Esquecido”. “Aquilo me tomou por completo”, lembra. Tomado, ele começou a traduzir o palestino. Calil é um novato, mas, com 26 anos, já desponta como uma das promessas de sua geração.
Calil parece ter menos interesse nas questões políticas e identitárias e mais nos temas históricos e literários. Fala sobre a não filosofia de Darwich, sobre como ele não resvala no que chama de “formas fracas do realismo”. “Vejo uma tensão entre o Darwich ativista e o transcendental”, afirma.
Há tempos, críticos reclamam de como autores de zonas marginais do mundo são reduzidos a representantes de seus povos. Há pouco tempo o próprio Darwich aparecia como uma voz palestina, agrilhoada à causa nacional— enquanto escritores europeus são tidos como universais.
Na tradução de Calil, não é a identidade ou a política que se destacam —mas a língua. Ele captura as particularidades do árabe. A língua semítica existe em dois registros. Há o árabe formal, escrito, como o utilizado por Darwich. Há também o oral, do cotidiano. É difícil de traduzir, porque o português não vive essa dualidade. A situação mais parecida é a do latim, que por algum tempo conviveu com as línguas latinas.
“No árabe, temos essa mordaça e, ao mesmo tempo, um estilhaçamento dos jeitos de dizer”, diz. “Por isso, quis encontrar um português que pudesse exprimir essa remoção do tempo e da própria língua.”
Memória para o Esquecimento
Autor: Mahmud Darwich. Trad.: Safa Jubran. Ed.: Tabla. R$ 63 (216 págs.)