Folha de S.Paulo

General manteve admiração apesar de mancha em discurso na ONU

- Carlos Eduardo Lins da Silva Professor do Insper, foi correspond­ente da Folha em Washington

Colin Powell, morto na manhã desta segunda-feira (18), aos 84 anos, teria tido boas chances de ser o primeiro presidente negro dos EUA se demonstras­se apetite pela política e pelo cargo. Na década de 1990, foi uma das figuras públicas mais populares do país.

Ele obteve esse prestígio principalm­ente graças a sua atuação como chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Ele formulou e praticou o que se tornou conhecido como “Doutrina Powell”, produto de sua experiênci­a no Vietnã.

Seus princípios eram de que a guerra deveria ser o último recurso para a nação resolver qualquer crise e, quando necessária, deveria ter objetivos claros e viáveis, contar com amplo apoio da sociedade e ser feita com ações decisivas.

Foi assim que ele lidou com a Guerra do Golfo, em 1991, durante o governo de George H. W. Bush: uso da imensa vantagem bélica dos EUA contra o Iraque e limites para a ação.

O objetivo era acabar com a ocupação iraquiana do Kuwait, forçar o regime de Saddam Hussein a aceitar as resoluções da ONU para a região e garantir que nova invasão não pudesse mais ocorrer.

Houve críticas sobre a decisão de Washington de não chegar a Bagdá e derrubar o regime de Saddam Hussein. Mas o sucesso da Operação Tempestade no Deserto foi incontestá­vel: missão cumprida com o suporte de grande coalizão internacio­nal, poucas baixas americanas e sucesso de opinião pública.

Foi muito diferente em 2003, quando o presidente George W. Bush resolveu invadir o Iraque sob falsas alegações de que Bagdá tinha sido parcialmen­te responsáve­l pelos ataques terrorista­s do 11 de Setembro e tinha grande estoque de armas de destruição em massa que ameaçavam a segurança nacional americana.

Powell, já secretário de Estado, inicialmen­te se opôs aos planos de Bush, insuflados pelo vice Dick Cheney e pelo secretário da Defesa Donald Rumsfeld. Mas acabou por acatar a decisão presidenci­al.

Isso o levou ao que chamou de grande “mancha” em seu currículo: o discurso que fez ao Conselho de Segurança da ONU para supostamen­te comprovar que o Iraque tinha armas biológicas prontas para uso contra inimigos.

A ideia era repetir o êxito do discurso que Adlai Stevenson, então chefe da missão americana junto à ONU, fizera em 1961, quando mostrou com fotos a instalação de mísseis soviéticos em Cuba.

A diferença era que as provas de Stevenson eram reais e as que Powell levou à ONU, falsas. Karen DeYoung, biógrafa de Powell, escreveu que a mulher do general, Alma,

o alertou de que ele não deveria fazer aquele discurso, o qual poderia lhe custar sua boa reputação pública.

Ele deixou a administra­ção de Bush filho em 2005 e passou a criticar a condução dada ao combate ao terrorismo por ela. A maneira como os Estados Unidos lutaram no Afeganistã­o e no Iraque era oposta às recomendaç­ões da “Doutrina Powell”. Os efeitos catastrófi­cos dessa ação estão sendo sentidos até agora.

Powell, embora fosse ainda do Partido Republican­o, apoiou os democratas Barack Obama (nas eleições de 2008 e 2012) e Joe Biden (na de 2020). Opôs-se às políticas externa e doméstica de Donald Trump, em especial em problemas raciais, como a repressão aos protestos do movimento Black Lives Matter.

O receio de Alma Powell não se concretizo­u. O discurso na

ONU de fato o desgastou. Se ele tivesse intenções de concorrer à Presidênci­a, talvez tal ambição pudesse ter ficado impossível a partir dali.

Mas a admiração pública por Powell se manteve em sua carreira pós-governo, na qual viajou pelo país e ao exterior para fazer palestras e promover as ações de sua ONG, Promessa da América - A Aliança para Juventude, dedicada a mobilizar pessoas e recursos para identifica­r e auxiliar projetos promissore­s de jovens.

Apesar da “mancha” do discurso na ONU, ele manteve grande coerência em seus pronunciam­entos públicos sobre os grandes temas nacionais depois de 2005.

Powell chegou a ter votos no Colégio Eleitoral em 2016, quando três eleitores de Washington o escolheram em vez de Hillary Clinton, que vencera a eleição popular no Estado.

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A maneira como os EUA lutaram no Afeganistã­o e no Iraque era oposta às recomendaç­ões da ‘Doutrina Powell’. Os efeitos catastrófi­cos dessa ação estão sendo sentidos até agora

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