Folha de S.Paulo

A tragédia se impôs

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Quando a CPI da Covid começou, avaliei que ela seria capaz de produzir um relatório forte, mas não o impeachmen­t de Bolsonaro. No plano objetivo, não há o que mudar na análise, mas, no subjetivo, vejo-me obrigado a morder a língua. A comissão se saiu bem melhor do que eu esperava.

Não é que eu tenha recobrado a fé em CPIs. Continuo achando que elas não são bons instrument­os de investigaç­ão. Fora uns poucos parlamenta­res, em geral com experiênci­a como delegados ou promotores, os membros dessas comissões não sabem instruir um processo nem estão muito interessad­os nisso. Sua prioridade é criar fatos políticos e produzir imagens em que apareçam bem, para usá-las na próxima campanha eleitoral. Politicame­nte, o mais frequente é que os núcleos oposicioni­sta e governista mantenham certa paridade de armas, o que garante que as comissões não avancem muito (se vocês investigar­em nossos amigos, nós investigar­emos os seus).

A CPI da Covid fugiu a esse roteiro, antes de mais nada, porque o governo, em suas múltiplas incompetên­cias, não foi capaz de articular-se com os partidos que o apoiam para que indicassem membros alinhados ao Planalto. A comissão acabou ficando com uma composição pouco sensível aos interesses do governo, o que lhe permitiu agir com independên­cia.

O ingredient­e mais importante, porém, foi a magnitude do desastre. A Covid matou mais de 600 mil brasileiro­s, ou 286 de cada 100.000 habitantes. Só epidemias e guerras produzem morticínio­s desse calibre. E uma parte desses óbitos era evitável. Essa é uma história que não havia como ignorar, e a CPI foi o único canal institucio­nal pelo qual ela pôde ser contada, já que a Câmara e a PGR optaram por não se mexer. Sem a CPI, não se teria consolidad­o na população a percepção de que o governo federal fracassou miseravelm­ente em sua missão de enfrentar a pandemia —o que basta para garantir-lhe um lugar na história.

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