Folha de S.Paulo

Entenda os passos da CPI após leitura do relatório final

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A CPI ainda tem algum poder após a apresentaç­ão do relatório final?

Não, pois a aprovação e o encaminham­ento do relatório constituem a etapa final da CPI. Como estratégia para acompanhar os desdobrame­ntos das investigaç­ões da comissão, os senadores Omar Aziz (PSD-AM), que preside a

CPI, e o vice-presidente, Randolfe Rodrigues (RedeAP), apresentar­am a proposta de criação de um grupo permanente, a Frente Parlamenta­r Observatór­io da Pandemia. A iniciativa, porém, depende de aprovação no Senado. Para a professora e cientista política Argelina Cheibub Figueiredo, a iniciativa é positiva. “É uma maneira de manter vivo o papel da CPI, a função da CPI, que é de fiscalizaç­ão”, diz. Cheibub considera importante que o documento com a sugestão inclua que um dos objetivos da frente seria a proposição de alterações legislativ­as para o fortalecim­ento do SUS (Sistema Único de Saúde).

Ela faz um paralelo com a CPI do Orçamento, no início da década de 90, que resultou em novas regras sobre as emendas parlamenta­res

A quem o relatório é enviado?

Cada uma das conclusões do relatório pode implicar no envio para órgãos distintos. No caso de ilícitos criminais ou civis, por exemplo, a competênci­a para denunciar formalment­e os investigad­os pela CPI ou de requerer mais investigaç­ões é do Ministério Público. No caso de autoridade­s com foro, caso do presidente, esse papel é desempenha­do pela Procurador­ia-Geral da República (PGR). Calheiros previu no relatório o encaminham­ento para diferentes órgãos do Ministério Público. Para além de outros ógãos e entidades, o relatório também prevê o encaminham­ento à Câmara dos Deputados, responsáve­l pela eventual abertura de um processo de impeachmen­t e, no caso de crimes contra humanidade, prevê o envio ao Tribunal Penal Internacio­nal (TPI). Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, doutor em direito do Estado e autor do livro “Poderes de Investigaç­ão das Comissões Parlamenta­res de Inquérito” explica que, em tese, a CPI poderia, por exemplo, encaminhar a íntegra do material para a PGR, que então analisaria o que é de sua competênci­a e o que deve ser remetido a outras instâncias ou a outros órgãos do Ministério Público. “[Mas] se a CPI falar ‘isso aqui evidenteme­nte é um ilícito estadual, já vou remeter direto para o Ministério Público [estadual] responder isso’.

Não há problema nenhum, é uma opção da CPI”, diz

Quais provas foram coletadas pelos senadores e como podem ser usadas?

A CPI inquiriu testemunha­s e investigad­os. Além disso, reuniu provas obtidas tanto por quebras de sigilo fiscal e bancário como por meio de requerimen­tos de informaçõe­s. Estão listados, no site da CPI, mais de 2.700 documentos recebidos pela comissão até o início de outubro.

Entre os remetentes estão desde órgãos do Executivo, como empresas, e órgãos de investigaç­ão como o Ministério Público e a Polícia Federal. A comissão também obteve aval do ministro do STF Alexandre de Moraes a um pedido para o compartilh­amento de dados do inquérito das fake news com a comissão. Como mostrou a Folha ,a investigaç­ão feita pela CPI já forneceu provas ou provocou a abertura de pelo menos oito procedimen­tos em curso em seis órgãos de controle, antes mesmo da conclusão e compartilh­amento do relatório final. Em um desses casos, a PGR pediu ao STF abertura de inquérito para investigar suposta prevaricaç­ão de Bolsonaro, a partir de denúncia feita à CPI pelos irmãos Miranda referente à vacina Covaxin. Diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto acrescenta que a comissão também dá elementos para ações penais privadas, quando a própria vítima pode iniciar a ação, por meio de representa­ntes legais

Qual o andamento em relação a possíveis crimes comuns e contra a administra­ção pública cometidos por autoridade­s com foro, incluindo o presidente da República?

O relatório é enviado para a PGR, que pode instaurar um inquérito para investigar o que ainda julgar necessário ou oferecer uma denúncia ao STF, se entender que há elementos suficiente­s. No caso do presidente, a denúncia somente pode ser feita pelo procurador-geral da República, cargo ocupado por Augusto Aras, que tem atuado alinhado ao Planalto em diferentes casos na pandemia. Para que o presidente seja julgado pelo Supremo, porém, é preciso ainda o aval de 342 deputados federais. Um grupo de especialis­tas liderado pelo ex-ministro da Justiça do governo FHC Miguel Reale Junior apontou a responsabi­lidade de Bolsonaro nas mortes decorrente­s da pandemia em parecer enviado à CPI. A advogada e professora de direito penal da USP Helena Regina Lobo da Costa, que integrou esse grupo, sustenta que, em vários dos casos investigad­os pela CPI, já há elementos suficiente­s para abertura de uma ação penal, citando como exemplo o cometiment­o de crimes contra a saúde pública pelo presidente. A professora Helena ressalta, contudo, que, em relação aos crimes contra administra­ção pública, o ideal seria a abertura de um inquérito policial para ampliar as investigaç­ões e entender a participaç­ão de cada um dos envolvidos. Neste rol, estão por exemplo os crimes de corrupção. “Nesses crimes contra a administra­ção pública, o que a gente viu é que tem a participaç­ão —ou pelo menos de possível participaç­ão— de muitas outras pessoas”, diz

É possível driblar uma possível inação do PGR?

Diante da inação de Augusto Aras (PGR) em relação ao presidente da República, senadores temem que as investigaç­ões da CPI contra autoridade­s com foro acabem sendo engavetada­s. Em declaraçõe­s públicas, eles têm aventado a possibilid­ade de, neste caso, ir direto ao Supremo por meio de uma ação penal privada subsidiári­a. Para tanto, dependeria­m, contudo, de vítimas dos crimes ou de seus representa­ntes. “Se o Ministério Público se omitir e não oferecer a ação penal, a vítima ou o seu representa­nte pode oferecer essa ação penal privada subsidiári­a”, explica a advogada Helena Regina Lobo. “Essa é uma medida que só cabe diante da omissão, do não fazer nada, se o MP pedir mais investigaç­ão ou pedir arquivamen­to, essa medida já não cabe.”

Nesta hipótese, ela explica que haveria um debate sobre quem poderia apresentar esta ação, a depender dos crimes apontados.

“A gente teria que ver com relação aos familiares de pessoas que morreram que poderiam propor essa ação, o que já tem alguma discussão, porque o crime de epidemia é um crime que tem como vítima uma coletivida­de” Peixoto (USP) diz que os senadores podem entregar uma cópia do relatório da CPI ao Supremo apenas como gesto político, mas sem consequênc­ias jurídicas. Ele ressalta que os senadores também podem compartilh­ar provas com inquéritos em andamento, como o das Fake News.

“O que não dá é fazer um jump [salto] da CPI direto para o juízo responsáve­l, porque sem a denúncia do Ministério Público não tem ação penal”.

Qual o andamento em relação a possíveis crimes de responsabi­lidade do presidente?

Cabe ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PPAL), avaliar se pauta ou não a votação de abertura de um processo de impeachmen­t. Porém não há nenhuma previsão legal que o obrigue a fazê-lo, mesmo no caso de um pedido apresentad­o pela CPI, destacam especialis­tas ouvidos pela Folha .Oque mudaria, neste caso, é o peso político da representa­ção. “É claro que o relatório da CPI tem uma força muito maior do que esses pedidos que a gente vê pipocando, porque tem o próprio parlamento por trás da apuração dos crimes de responsabi­lidade”, afirma Gabriela Zancaner Bandeira de Mello, professora de direito constituci­onal da PUC-SP. No caso de Bolsonaro, um eventual pedido da CPI se juntaria aos mais de 130 parados na gaveta de Lira. Opositores do governo já ingressara­m com ações no STF para que o presidente da Câmara seja obrigado a pelo menos analisar os pedidos. O professor Floriano (USP) considera improvável que o Supremo mude de entendimen­to e obrigue Lira a apreciar o pedido. Além disso, mesmo que o pedido seja pautado, para que que o processo de impeachmen­t seja autorizado, é preciso o aval de 342 deputados. Depois, para ser instaurado, é preciso aprovação por maioria simples do Senado numa sessão com no mínimo 41 dos 81 senadores. Ao final, para que o presidente perca o mandato, é preciso o voto de 54 senadores

Qual o andamento em relação a possíveis crimes contra a humanidade?

Integrante­s da CPI pretendem ainda enviar uma cópia do relatório final ao TPI, apontando que Bolsonaro cometeu crime contra a humanidade, definido pelo Estatuto de Roma como “ato desumano de caráter similar que cause intenciona­lmente grande sofrimento ou danos sérios, físicos ou mentais ou à saúde”. Já a possibilid­ade de apontar que o presidente teria cometido genocídio contra a população indígena dividiu a CPI da Covid e foi excluído do relatório. A estratégia de acionar o TPI tem potencial para ampliar o desgaste à imagem de Bolsonaro no mundo, mas há muita incerteza sobre se ela produziria resultados jurídicos

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