Folha de S.Paulo

Só uma piada

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Assisti ao polêmico stand-up de Dave Chapelle que despertou a ira da comunidade LGBTQIA+. Não me estatelei de rir, mas há obviamente boas piadas. O que me interessa, porém, não é discutir se o programa é engraçado, mas as queixas contra o comediante.

Todo mundo é livre para gostar ou não de um show ou de qualquer outra manifestaç­ão artística. Quem não gosta ou se sente ofendido tem, é claro, o direito de criticar, em termos hiperbólic­os se desejar. O que não me parece tão sábio é transforma­r os inevitávei­s juízos divergente­s numa batalha moral. Fazê-lo implica perder de vista a principal caracterís­tica do humor e da ficção em geral, que é a de experiment­ar com a realidade.

O humor, que é essencialm­ente um jogo em que diferentes camadas de significad­o se chocam produzindo novos significad­os, nos permite dizer coisas sem nos compromete­rmos com elas. Se eu faço um gracejo com um conhecido e ele quer me bater, posso dizer que era só uma brincadeir­a e evitar o confronto. O humor, a literatura e até os sonhos são, como os simuladore­s de voo, uma forma de testar situações correndo menos riscos —uma formidável ferramenta de aprendizad­o.

Como já observara Henri Bergson, o humor tem uma faceta cruel, já que muitas piadas exigem “uma anestesia momentânea do coração”. A palavra-chave aqui é “momentâneo”. Não é porque Chapelle troça de um grupo num dado instante que ele o está rebaixando moralmente e lhe negando humanidade. A coisa é traiçoeira, pois também é possível fazer exatamente isso. Gente da extrema direita se refugia no humor para atacar minorias e depois, se necessário, recua dizendo que era brincadeir­a. É só o contexto que permite diferencia­r as duas situações.

Blindar consensos morais da possibilid­ade de contestaçã­o é complicado. Gays e outras minorias gozam hoje de direitos porque alguém em algum momento ousou afrontar a moral então vigente.

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