Folha de S.Paulo

As vírgulas do relatório

- Alvaro Costa e Silva

O alagoano Renan Calheiros entrou na política nos anos 70 e nunca mais saiu, lambuzando-se todo. O também alagoano Graciliano Ramos rapidament­e se enojou dela, renunciand­o ao cargo de prefeito de Palmeira dos Índios em 1930, dois anos após sua posse. “Para os cargos da administra­ção municipal escolhem de preferênci­a os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos a menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício”, decretou ele em carta a Heloísa, sua mulher.

No período que passou tentando fazer com que os abastados comerciant­es e os chefes políticos pagassem impostos, Graciliano deixou outra lição que até hoje Renan não aprendeu. Os relatórios de sua luta para melhorar a educação e a infraestru­tura na pequena cidade são peças clássicas não só da burocracia como da literatura e lhe abriram caminho para a publicação do romance guardado na gaveta, “Caetés”.

Seria injusto exigir do senador e da penca de assessores a exata colocação de vírgulas, a linguagem coloquial e o estilo cáustico do escritor. Concisão e clareza sim, e estas faltaram ao relatório da CPI. A justificat­iva para 1.180 páginas de tortuosa leitura está na sugestão de indiciamen­to de quase cem pessoas — entre as quais Bolsonaro e seus filhos— por um total de 24 crimes. Até a ema do Alvorada, inocente vítima que não pode exigir reparação na Justiça, foi citada no texto.

Apesar de acertar o alvo principal —mas aliviar para os militares do regime—, o parecer é confuso. Na ânsia de combater a desinforma­ção nas plataforma­s digitais, por exemplo, Renan atropela o Marco Civil da Internet e propõe mudanças que nem os bolsonaris­tas ousaram propor.

Quanto ao genocídio de indígenas, pelo qual Bolsonaro não foi responsabi­lizado, trata-se de um erro de origem: a comissão não investigou o tema em profundida­de. Desde os tempos do prefeito Graciliano que índio não dá voto.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil