Folha de S.Paulo

Mercantili­zação da saúde

Qualidade muitas vezes é substituíd­a pela sustentabi­lidade do negócio

- Renato Azevedo Júnior Médico cardiologi­sta, é ex-presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), diretor da Associação Paulista de Medicina e vice-presidente da Sociedade de Cardiologi­a do Estado de São Paulo

As operadoras de planos de saúde são pessoas jurídicas que oferecem prestação de serviços. A relação entre os pacientes e as operadoras é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, tratando-se de uma relação de consumo.

Sem emitir juízo de valor, essa mercantili­zação da saúde obedece à lógica de acumulação de capital, sem a qual a empresa não sobrevive. Portanto, as operadoras atuam como empresas, e uma de suas finalidade­s é a redução de custos e maximizaçã­o dos lucros, o que cria um cenário onde a qualidade pode ser substituíd­a pela sustentabi­lidade do negócio.

No país, os maus efeitos desse modelo são potenciali­zados por alguns fatores, principalm­ente a falta de regulament­ação e fiscalizaç­ão do setor por parte do Estado brasileiro.

Essa função deveria ser realizada pela Agência Nacional de Saúde Suplementa­r (ANS), mas, infelizmen­te, o que se verifica na prática é que a ANS foi capturada pelos interesses dos planos de saúde. A isso se soma a atuação dos Conselhos de Medicina, que deveriam igualmente exercer um papel fiscalizad­or.

Diante dos últimos acontecime­ntos expostos pela CPI da Covid no Senado, soubemos que tanto a ANS quanto os conselhos regionais e Federal de Medicina foram omissos, quando não coniventes, com a insistênci­a de algumas operadoras em oferecer, de forma quase compulsóri­a e experiment­al, tratamento­s sem eficácia e com riscos de malefício contra a Covid-19.

A verticaliz­ação ocorre quando a operadora de plano de saúde investe em estruturas próprias, como hospitais, clínicas e laboratóri­os, tornando todos os trabalhado­res da saúde, incluindo os médicos, em empregados assalariad­os ou “pejotizado­s”, exercendo controle absoluto sobre todas as atividades médicas realizadas e podendo determinar o que deve ou não ser feito em termos de assistênci­a médica. A partir desse modelo decorrem problemas que atualmente tornam a verticaliz­ação prejudicia­l aos pacientes.

Em primeiro lugar, é comum o estabeleci­mento de rígidos protocolos de atendiment­o, que devem ser completame­nte seguidos pelo médico —concorde este ou não— sob pena de demissão.

Desse modo, a operadora pode impor ou recusar procedimen­tos de diagnóstic­o e tratamento. Na realidade, o que se verificou na pandemia foi a imposição de tratamento­s sem evidências científica­s de benefício (e com evidências de malefícios) aos médicos e pacientes.

Em segundo lugar, há um grande impacto desse processo sobre a própria liberdade de escolha do paciente (visto como um “cliente”), pois, tendo em vista as limitações e imposições, a verticaliz­ação restringe as opções aos próprios serviços da operadora de saúde.

Uma adequada normatizaç­ão e fiscalizaç­ão —como determina a lei— certamente contribuir­á para a melhoria do sistema como um todo, garantindo a defesa da qualidade da assistênci­a médica prestada, em benefício dos pacientes. Para isso, o modelo de verticaliz­ação precisa passar por uma sólida e permanente regulação e supervisão do Estado para que abusos sejam coibidos.

Melhor ainda seria se o governo federal financiass­e adequadame­nte o Sistema Único de Saúde (SUS), oferecendo alternativ­a de assistênci­a médica pública de qualidade à população brasileira.

Afinal, saúde não se reduz a uma mera mercadoria e, por isso, exigese um rigor na defesa de pacientes e de médicos envolvidos com a recuperaçã­o da higidez e a preservaçã­o da vida do ser humano, interesses que ultrapassa­m em muito o objetivo de lucros das empresas.

É comum o estabeleci­mento de rígidos protocolos de atendiment­o, que devem ser completame­nte seguidos pelo médico —concorde este ou não— sob pena de demissão. Desse modo, a operadora pode impor ou recusar procedimen­tos de diagnóstic­o e tratamento

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