Folha de S.Paulo

Como chegamos a esse ponto?

Desprezo pelos direitos humanos é a receita certa para o fracasso

- Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universida­de Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP; autor de “A Batalha dos Poderes”

Acusado de deliberada­mente “causar pandemia, mediante a propagação de germes patogênico”, além de diversos outros delitos, que resultaram na morte milhares de pessoas, Bolsonaro emerge da CPI como uma figura destituída de qualquer capacidade de expressar empatia pelo povo que governa. O sofrimento, a dor e mesmo as mortes não foram capazes de provocar no presidente, ainda que por mero cinismo, nenhum sinal de compaixão –“todo mundo morre um dia”; “e daí? ”; menos ainda foram suficiente­s para induzi-lo a atos concretos voltados a mitigar a pandemia, concluiu o relatório.

A questão que se coloca é como chegamos até aqui? Como uma parcela substantiv­a do eleitorado, que certamente não é formada por uma maioria de pessoas destituída­s de senso moral, foi capaz de se identifica­r com uma figura que passou a vida a repudiar e desprezar a dignidade e os direitos das pessoas? Como confiaram em alguém obcecado pela violência, pelas armas, pela destruição do meio ambiente e da cultura; um defensor intransige­nte de uma liberdade absoluta de discrimina­r, ofender e excluir mulheres, negros, indígenas e gays; um político empenhado por décadas em demonizar todos aqueles que se contrapõem às suas ideias, como ficou registrado na recente e infame imputação de pedofilia dirigida a ex-ministros de direitos humanos?

Certamente a ascensão de Bolsonaro é resultante de graves fatores de natureza política e econômica, que convulsion­aram a vida dos brasileiro­s nos últimos anos, gerando muito ressentime­nto e desconfian­ça em relação a políticos tradiciona­is. A escolha de Bolsonaro, no entanto, só foi possível porque uma parcela significat­iva do eleitorado, que se apresenta como liberal ou democrata, aceitou se juntar a uma outra parcela minoritári­a do eleitorado, que jamais escondeu o seu repúdio à democracia e aos direitos humanos.

Isso indica um preocupant­e descomprom­isso de amplos setores de nossa sociedade com o imperativo político, jurídico e moral, inerente à gramática dos direitos humanos e da democracia liberal, de que todas as pessoas têm igual valor, devendo ser tratadas dignamente.

As desigualda­des estruturai­s e persistent­es, de natureza social, econômica e racial, certamente têm contribuíd­o para que o respeito recíproco à dignidade, que deveria cimentar uma sociedade democrátic­a, não tenha se consolidad­o entre nós. Nesse sentido, ainda que muitos não cheguem a dar de ombros à morte ou o sofrimento alheio –ou mesmo repudiem o comportame­nto tosco do presidente–, o fato é que assumiram o risco de instalar no poder e apoiar alguém que jamais escondeu seu desprezo por esses princípios civilizató­rios. Os resultados estão aí.

Como salientara­m os redatores da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, “o desprezo e o desrespeit­o aos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciênci­a da humanidade”. Assim como as vacinas, os direitos humanos constituem um instrument­o imprescind­ível para evitar catástrofe­s que com frequência ameaçam a vida e o bemestar das pessoas, no dizer do grande jurista argentino Carlos Santigo Nino. Quando são negligenci­ados, estamos automatica­mente fomentando desastres, como o vivenciado pela sociedade brasileira neste período.

O desastre pandêmico, devidament­e registrado pela CPI, não é, portanto, apenas um inelutável infortúnio sanitário, mas o resultado necessário de uma escolha política inconseque­nte, pautada por um profundo desprezo à dignidade humana.

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