Folha de S.Paulo

Cooperativ­a de garimpo se alça a uma das maiores do país

Vale do Guaporé opera com exigências ambientais menores, mas área a coloca entre gigantes da mineração

- Pedro Papini, Fernanda Wenzel e Naira Hofmeister

infoamazon­ia Uma dupla de ex-servidores públicos da pequena cidade de Conquista d’Oeste (MT), sem nenhuma experiênci­a em mineração, tenta abocanhar uma área na Amazônia quase tão grande quanto a detida pela Vale S.A. para explorar ouro, diamante e cobre.

Fundada há pouco mais de um ano por Aldeir Farias Simões e Ezequiel Alves, a Cooperativ­a dos Mineradore­s do Vale do Guaporé já é a quinta maior mineradora nacional em área requerida, disputando espaço com gigantes multinacio­nais como a Nexa Resources e a Anglo American.

Embora ostente números grandiosos, a cooperativ­a opera sob um regime de concessão de áreas desenhado para garimpeiro­s artesanais que trabalham em território­s reduzidos e com poucos recursos. Entre outras facilidade­s, as chamadas PLGs (permissões de lavra garimpeira) barateiam o processo burocrátic­o para requerer áreas de mineração, pois estão sujeitas a menos exigências ambientais.

“É uma distorção absurda e os os riscos socioambie­ntais são altíssimos, porque, na prática, é um empreendim­ento de grande porte que acaba se livrando de licenciame­nto e pesquisa prévia, camuflado de atividade artesanal”, critica o procurador da República Paulo de Tarso Moreira Oliveira, que atua no Pará.

Pela lei, as PLGs não podem ter mais do que 50 hectares —um cálculo que considera o trabalho de um grupo pequeno de pessoas usando ferramenta­s artesanais. Cooperativ­as podem pedir até mil hectares, porque somam esforços de pelo menos vinte trabalhado­res. Se a lavra estiver na Amazônia Legal, esse limite salta para 10 mil hectares.

Mas a Vale do Guaporé soma 2,4 milhões de hectares requeridos —quase a metade disso está distribuíd­a em PLGs coladas umas às outras formando, na prática, 25 blocos muito maiores do que 10 mil hectares. “A lei permite ter vários requerimen­tos onde você quiser”, defende Ezequiel Alves, um dos fundadores do empreendim­ento.

Não é o que pensa o Ministério Público Federal. “É uma forma de burlar o limite. É muito absurdo conceder a uma única cooperativ­a áreas em vários lugares porque é impossível que os garimpeiro­s estejam trabalhand­o nesses vários lugares, sobretudo ao mesmo tempo”, contesta o procurador Oliveira.

A reportagem levantou os dados disponívei­s no Sigmine, Sistema de Informação Geográfica da Mineração, da ANM (Agência Nacional de Mineração). Até 30 de setembro, período analisado pelo InfoAmazon­ia, nenhum requerimen­to da Vale do Guaporé havia recebido autorizaçã­o.

A contagem do InfoAmazon­ia foi conservado­ra, já que considerou apenas as situações em que um requerimen­to encosta no seguinte. Mas há muitos outros pedidos da cooperativ­a com distância de poucos metros entre si.

O maior dos blocos da Vale do Guaporé está em uma área especialme­nte sensível: com 330 mil hectares, ocupa quase todo o espaço que separa a terra indígena (TI) Piripkura — onde os últimos sobreviven­tes da etnia resistem a invasores, conforme o InfoAmazon­ia e a Folha contaram em setembro —, dos território­s Zoró e Aripuanã. As três áreas têm registro de povos isolados.

A Vale do Guaporé também possui 45 requerimen­tos de lavra garimpeira na área do rio Juruena, a segunda região de Mato Grosso com maior registro de povos isolados. São três, mas nem todos têm os limites de seus território­s reconhecid­os pela União.

“É alarmante. Se a gente olha o mapa da bacia do Juruena, os principais rios estão com requerimen­tos de lavra que apareceram do meio de 2020 para cá”, alerta o indigenist­a Ricardo Da Costa Carvalho, da Opan (Operação Amazônia Nativa). Quase todos são PLGs solicitada­s pela Vale do Guaporé, líder em pedidos na região.

Nos casos das terras Zoró e Aripuanã, há ainda outro agravante. Os requerimen­tos da Vale do Guaporé aparecem dentro destas duas áreas protegidas. Situação semelhante acontece na TI Trincheira Bacajá, no Pará. Esse é mais um recorde da cooperativ­a: é a maior detentora de pedidos de garimpo sobreposto­s a terras indígenas, com 24 requerimen­tos de PLG em 12 TIs diferentes.

A Constituiç­ão Federal veda garimpo em território­s indígenas, mas o presidente Jair Bolsonaro trabalha para mudar essa regra. No ano passado, enviou um projeto de lei ao Congresso Nacional que legaliza todos os garimpos irregulare­s do Brasil, mesmo os abertos em terras indígenas.

Ainda que o potencial de dano ambiental seja alto pelo tamanho das áreas requeridas, as lavras garimpeira­s normalment­e são licenciada­s por secretaria­s municipais de meio ambiente — que além de menos estruturad­as, estão mais suscetívei­s às pressões locais.

No caso da Vale do Guaporé, sete dos 20 sócios são ou foram integrante­s da administra­ção de Conquista d’Oeste, cidade de 4.000 habitantes, ou de órgãos de assessoram­ento do poder executivo local.

A começar pelos dois fundadores do empreendim­ento: Ezequiel Alves foi chefe de gabinete dos prefeitos Walmir Guse (na época do PR) e Maria Lucia De Oliveira Porto (na época no PP) em dois períodos diferentes, entre 2013 e 2020, e chegou a ser secretário de Cultura do município. Aldeir Simões passou por vários cargos comissiona­dos entre 2015 e 2020.

O atual secretário da Fazenda de Conquista d’Oeste, Warlei Adriano dos Santos, é um dos que assinaram ficha de filiação na cooperativ­a — nenhum declarou “garimpeiro” como atividade profission­al. Há oito trabalhado­res autônomos, dois “do lar”, uma estudante, um bancário, três empresário­s, um supervisor de produção, uma aposentada, um agricultor e duas pessoas que declaram ser funcionári­as públicas.

Boa parte dos cooperados são familiares da dupla Ezequiel e Aldeir, convocados para completar o número mínimo de 20 sócios exigidos pela legislação brasileira para empreendim­entos cooperativ­os. A reportagem não conseguiu contato com Warlei Santos.

Outro indício de que a Vale do Guaporé é uma empresa disfarçada de cooperativ­a é o fato de que seus dois dirigentes são também sócios em duas companhias mineradora­s tradiciona­is, criadas pouco antes da cooperativ­a, mas deixadas de lado após a abertura do novo negócio.

“A gente teve essa experiênci­a [de abrir a mineradora], mas o custo para manter uma área [de mineração] de empresa é muito alto, e a gente está começando agora. Daí optamos pela cooperativ­a que tem um custo mais baixo para a gente começar e se estabiliza­r”, admite Ezequiel Alves, referindo-se ao valor de R$ 1.012,73 em taxas exigidas de companhias do tipo limitada que requeiram áreas de mineração. No caso de PLGs, esse custo baixa para R$ 204,13.

 ?? ??
 ?? Lalo de Almeida - 13.set.19/Folhapress ?? Homens trabalham em garimpo de ouro perto do rio Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso
Lalo de Almeida - 13.set.19/Folhapress Homens trabalham em garimpo de ouro perto do rio Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil