Filme deu origem a uma das maiores eras do cinema nacional
Imagine um país inviável, presidido por um falso caçador de corruptos, que vê a cultura e a educação como inimigas. Imagine que esse mesmo país, com taxa de inflação descontrolada e miséria crescente, se valha de medidas econômicas caóticas, forçando muitos de seus habitantes a optar pelo exílio, párias em terras estrangeiras.
Esse era o Brasil do início da década de 1990, mas bem poderia ser o de agora. Estranho comemorar 25 anos da feitura de “Terra Estrangeira”, durante a reprise dos piores momentos da pátria.
São muitos os paralelos. Em março de 1990, ao assumir a Presidência da República, Fernando Collor de Mello extinguiu o Ministério da Cultura. Um mês depois, o Programa Nacional de Desestatização deu fim à Embrafilme.
O óbito em forma de decreto foi assinado pelo então secretário de Cultura, o cineasta Ipojuca Pontes. Pontes amargava o ostracismo e nutria o ressentimento de seus pares, sentimento comum a muitos secretários e ministros do atual governo Messias.
Do dia para a noite, toda a estrutura que mantinha a indústria de cinema foi desmantelada. Não havia nem sequer telefone para atender uma ligação. Era terra arrasada.
Eu, que havia emendado uma fita após a outra e recebido a Palma de Ouro de melhor atriz no Festival de Cannes, com o fim da Embrafilme, recorri às produções do além-mar. Fiz dois filmes em Portugal e um no México, da HBO, com Anthony Hopkins e Norma Alejandro.
E foi lá, no México, que recebi a notícia do confisco de Zélia Cardoso de Mello. Alarmada, contei para a produtora inglesa que o governo havia se apoderado de todo o dinheiro depositado pelos brasileiros nos bancos. Ann Skyner sorriu incrédula e respondeu: “Fernanda, don’t worry. They can’t do it! It doesn’t exist”.
O exílio de Alex, no “Terra”, era também o meu.
Walter Salles começara na TV, com programas de entrevista, fizera documentários importantes e, como toda a geração posterior à Embrafilme, encontrara nos comerciais a possibilidade de exercer, pelo menos na prática, uma profissão que já não existia.
Walter estreou na direção de longa-metragem em 1991. “A Grande Arte” era uma produção de porte considerável, falada em inglês, com casting gringo. Jamais conversamos sobre o assunto, mas pressinto que a experiência não lhe rendeu a liberdade e o sentido de autoria que experimentava durante a realização de seus documentários.
Quando intuiu o “Terra Estrangeira”, inspirado na imagem de um imenso navio encalhado na costa de Cabo Verde, o cineasta elegeu como parceira Daniela Thomas. Walter buscava tanto o acurado senso estético da artista, quanto a intimidade dela com o processo teatral.
Daniela acabara de realizar os cenários e figurinos de “The Flash and the Crash Days”, peça dirigida por Gerald Thomas, comigo e minha mãe no elenco. Entre um êxodo e outro, eu trocara as telas pelo palco. Dos palcos, também vieram Alexandre Borges, o rei Claudio do “Hamlet” do Teatro Oficina; Luiz Mello, o Macbeth do CPT, e Fernando Pinto, tão virgem quanto Paco.
Neófita em roteiro, Daniela passou a testar as cenas com os atores. Líamos em conjunto, arriscávamos diálogos e situações. Na outra ponta, Walter Carvalho, parceiro de Salles nos documentários, assumiu a fotografia e a câmera.
Chegamos a Lisboa com uma equipe mínima, ágil, filmávamos com incrível rapidez. Até hoje, tenho saudade da gramática do “Terra Estrangeira”, da elegância de um plano geral que entrega para o close, sem coberturas inúteis.
Era cinema de grupo, onde todos, desde o princípio, foram convidados a dividir a autoria. Assim, “Vapor Barato”, de Jards Macalé e Waly Salomão, virou tema do “Terra”. Walter me pediu para cantar uma música e o velho LP da Gal, que meus pais ouviam em looping, me surgiu como uma canção de exílio. Assim, Carvalho se arriscava em gruas sobre penhascos e Walter Salles servia de dublê, nas tomadas de ação.
“Terra Estrangeira” nos fundou. Daniela conquistou o cinema e a escrita se abriu para mim, vendo-a usar a improvisação para erguer uma cena no papel. Walter não teria realizado “Central do Brasil” sem se encontrar no “Terra”. Debutamos juntos. É um filme de formação, de juventude, de descoberta.
Tudo isso está impresso na tela. Vinte e cinco anos depois, “Terra Estrangeira” vem nos lembrar que, sim, existe vida depois da morte.
Nas oras funestas, há sempre um movimento contrário, criador, capaz de nos guiar para além. A retomada nasceu com “Carlota Joaquina” e continuou com o “Terra Estrangeira”, com “Cidade de Deus”, “Central do Brasil” e tantos filmes, peças, livros, músicas, séries e novelas que vieram e virão. Eles passarão. Eu passarinho.