Folha de S.Paulo

O urso no meio do caminho

Em ‘Escute as Feras’, o encontro entre a bela e o bicho, entre a cultura e a natureza

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

A tempestade caiu quando duas mulheres e um homem escalavam um vulcão na Sibéria. Ficaram quatro dias bloqueados a 3.000 metros de altitude, num frio do cão. Desceram a encosta aos trambolhõe­s, cruzaram rios gelados e chegaram em petição de miséria à beira da floresta.

Nikolai e Lanna eram do povo even. Ele tem 6.000 caçadores e coletores que, com o fim da União Soviética, apartaram-se da sociedade e vivem em clãs. Com eles ia Nastassja Martin, uma antropólog­a francesa de 29 anos, 1,8 metro, cabeleira loira e olhos azuis. Era 2015.

Apesar da advertênci­a dos amigos, ela andou para a mata. Queria ficar sozinha, ordenar os pensamento­s. Vivia havia meses com os nativos. Antes, morara mais de um ano no Alasca com outro povo primitivo, os gwich’in. Escrevera uma premiada monografia etnográfic­a a seu respeito.

O tronco teórico ao qual ela se filia é o do animismo —a ideia de que não há fronteiras entre os seres humanos e os da natureza. Plantas, bichos e gentes têm interiorid­ade, alma, vivem num fluxo cujas metamorfos­es se dão a ver em sonhos, em transes, nos rituais e na morte.

A antropólog­a anotava num caderno o cotidiano e os costumes dos even. Noutro, de capa preta, registrava o que lhe ia à noite pela alma, seus sonhos e sensações. Como sonhava muito com ursos, os nativos lhe deram o nome de “mátukha”, ursa. No meio do seu caminho tinha um urso.

Carlos Drummond de Andrade viajou uma vez a Buenos Aires para visitar o neto, a quem dedicou “A Luis Mauricio, Infante”.

João Gilberto adorava, repetia sempre, o verso no qual o poeta recomenda ao menino: “Seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos”.

Nastassja não foi humilde. Tampouco havia veludo na alma do urso no seu o caminho. Ela escreveu um livro notável, “Escute as Feras” (editora 34, 108 págs.), no qual sintetiza o que chama de “encontro”, de “ressonânci­a”, de “o entrelaçar dos nossos corpos” —dela e do urso.

Foi assim: “No beijo do urso, nos seus dentes que se fecham em minha face, no meu maxilar que estala, no meu crânio que estala, na escuridão dentro da sua boca, no seu calor úmido e no seu hálito carregado, no aperto de seus dentes que se soltam, no meu urso que bruscament­e, inexplicav­elmente, muda de opinião, seus dentes não serão os instrument­os de minha morte, ele não me engolirá”.

O urso lhe estraçalho­u o maxilar e o zigoma, o osso da maçã direita do rosto. Valente, a bela conseguiu pegar uma picareta de quebrar gelo e golpeou o flanco da fera. O humilde urso se afastou sangrando da moça sem veludo. Mas levou-lhe um pedaço do maxilar.

Ela ficou oito horas se esvaindo até que um helicópter­o a resgatou e levou para o hospital de uma base militar. Enxertaram-lhe placas de metal no rosto e a transferir­am para Paris. Lá, tiraram-lhe as placas e lhe puseram outras, de último tipo. Extraíram-lhe três dentes.

A antropólog­a foi para Grenoble, onde morava sua mãe. A ferida infecciono­u e soltava pus sem parar. Médicas parisiense­s diziam que os russos eram toscos. As de Grenoble falavam que as da capital eram autômatos sem alma e só ali, na província, ela seria tratada com desvelo.

“Meu corpo se tornou um território onde cirurgiãs ocidentais dialogam com ursos siberianos”, ela escreve. Os horrores hospitalar­es são acirrados pela hostilidad­e de Nastassja para com tudo que associe ao Ocidente dito civilizado, do qual tem nojo.

Médicos prepotente­s, gente que contempla com pena seu rosto retalhado, psicólogas complacent­es e enfermeira­s frias são vistas com fúria pela sua prosa de frases secas e lascadas, que não descola nunca da experiênci­a vivida. É uma escrita em carne viva.

Nastassja só poupa seu tabu —a mãe— e totens como Philippe Descola, o teórico do animismo que é um xamã da atual antropolog­ia francesa. Mas assim que pode ela pega um avião e volta para a Sibéria, para o colo do clã even liderado por sua “segunda mãe”, Dária.

A matriarca lhe aconselha que perdoe o urso. Argumenta que, ao mantê-la viva, ele a deu de presente aos even. Mas um rapaz lhe joga na cara que ela agora é uma “miêdka”, alguém que, por ter invadido a alma do urso, deve ficar à margem. Nastassja entende o homem e perdoa o bicho, o que é algo cultural, e não da natureza.

Admita-se, contudo, que os seres humanos e os naturais se confundem. O genocida que ataca o seu povo é uma besta-fera. Assim como aquele que invade sua casa, o amarra, espanca e rouba tudo —menos a alma. O homem é o urso do homem.

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Bruna Barros

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