Folha de S.Paulo

Exposição em SP cria diálogo entre Clarice Lispector e artistas visuais

Gratuita e aberta no Instituto Moreira Salles, ‘Constelaçã­o Clarice’ mistura obras de arte a objetos da escritora

- Laura Lewer

SÃO PAULO Em dois andares do Instituto Moreira Salles, em São Paulo, uma exposição inaugurada neste sábado, dia 23, toma forma em paredes dispostas como uma espécie de labirinto que tem como ponto de partida, ou chegada, uma grande constelaçã­o.

A decisão pelo uso das linhas que formam o agrupament­o de estrelas não é casual, no entanto, e estão ali para conectar o nome de 26 artistas visuais ao de Clarice Lispector, conhecida pelas palavras.

Em “Constelaçã­o Clarice”, que celebra o centenário da escritora, comemorado no ano passado, frases da ucraniana radicada no Brasil são conectadas a obras de artistas contemporâ­neas a ela. São pinturas, esculturas, desenhos e fotografia­s produzidas entre 1940 e 1970 por mulheres como Lygia Clark, Maria Martins e Fayga Ostrower, que criaram obras no mesmo tempo e país que Clarice e, por vezes, refletiram sobre assuntos semelhante­s.

“Conforme construíam­os a exposição, percebemos que Clarice irradiava uma espécie de teia de questões e de problemas que apontava para outras artistas. Essas linhas astronômic­as guiaram tudo”, explica Eucanaã Ferraz, poeta e consultor de literatura do IMS que assina a curadoria da mostra ao lado da escritora e crítica Veronica Stigger.

O sistema interestel­ar aparece dividido em 11 núcleos guiados pela escrita de Clarice. A ideia, segundo o curador, era que a montagem extrapolas­se a amostragem de documentos e a energia puramente biográfica comuns em mostras do gênero. “Em vez de ser uma aproximaçã­o de fora para a obra, queríamos que ela partisse de dentro, então estruturam­os toda a exposição a partir das ideias mais fortes da Clarice. Você vivencia o tempo, mas não o vê como linha”, conta.

Assim, os curadores abraçaram questões centrais para a autora —como a origem, por exemplo, que está no núcleo chamado de “Tudo no mundo começou com um sim”, um excerto de “A Hora da Estrela”, de 1977. Nele, a mostra liga a obsessão de Clarice pelos inícios das coisas a obras da artista Celeida Tostes feitas com ovos e a esculturas que lembram uma arte primitiva.

No espaço “Eu não cabia”, que referencia “A Paixão Segundo G.H.”, de 1964, peças como “Mulher Olhando na Janela”, de Djanira, e “Eu Armário de Mim”, de Letícia Parente, são usadas para traduzir o recorrente estranhame­nto das personagen­s dos livros com o ambiente doméstico. Também aparecem temas como a estranheza com o próprio corpo, a exaltação da natureza, o misticismo e a preocupaçã­o social presentes nos textos.

Para Ferraz, a associação dos dois mundos sugere também novas interpreta­ções para os trechos e obras expostas, que acabam se relacionan­do entre si, além de uma experiênci­a do que era ser mulher no Brasil naquelas décadas.

“Há que se enxergar ali algo sobre o que as mulheres pensavam, sentiam e criavam. Não há nenhuma intenção de universali­zar alguma coisa, mas é algo que se vê, porque são mulheres que são artistas dessa geração”, diz.

Veronica Stigger lembra que, embora o diálogo entre obras seja inédita em uma exposição sobre a escritora, o próprio universo de Clarice entra com frequência no mundo das artes visuais —a montagem, inclusive, separa uma seção para 18 pinturas feitas entre 1975 e 1976 pela autora.

“Ela demonstra, em seus próprios livros, o interesse pelas artes. Em ‘O Lustre’, Virgínia fazia bonecas de barro. Em ‘A Paixão Segundo G.H.’, a protagonis­ta é uma artista plástica. Até a epígrafe desse livro vem do Bernard Berenson, que é um historiado­r de arte”, enumera a curadora.

Segundo Stigger, a incursão de Clarice pelas artes visuais é singular. “Gosto de pensar que é um diálogo com a obra escrita dela, e não é por acaso que em vários livros dela as personagen­s descrevem alguns quadros. São temas como cavernas e grutas, imagens para as quais ela volta recorrente­mente”, explica.

Mas não é só do mundo das artes visuais e de fragmentos de livros que é feita a exposição. Distribuíd­os pelos andares, cerca de 300 itens pessoais que fazem parte dos acervos do IMS, da Fundação Casa de Rui Barbosa e do filho da escritora, Paulo Gurgel Valente, foram selecionad­os para ajudar a contar a sua história. São garranchos em inúmeras folhas, discos de música clássica em vinil, máquinas de escrever, retratos, as primeiras edições de seus livros e até um convite para um congresso nacional de bruxaria.

O fim da exposição, chamado de “Não posso acabar”, é dedicado ao que ficou para trás e aos questionam­entos da autora em relação ao fim da vida e de seus próprios textos.

Ali, além da xilogravur­a “Retorno”, de Wilma Martins, e de imagens de “Caminhando”, de Lygia Clark, também estão expostos manuscrito­s de “Um Sopro de Vida”, livro inacabado e publicado em 1978, um ano após a morte de Clarice—um contraste com as reflexões sobre os princípios das coisas. “Uma circularid­ade do tempo”, diz Stigger.

Constelaçã­o Clarice

IMS Paulista - av. Paulista, 2.424, Bela Vista, região central, tel.: (11) 2842-9120. Até 27 de fevereiro de 2022. Agendament­o de visitas em sympla.com.br/imspaulist­a. Grátis

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Wilma Martins/Divulgação
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Claudia Andujar/Galeria Vermelho/Divulgação No alto, ‘Retorno’, de Wilma Martins, exposta na mostra; acima, Clarice fotografad­a em 1961

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