Folha de S.Paulo

A escolha do seu alimento transforma a sociedade

- Fernando Rossetti Jornalista, consultor e presidente do conselho de administra­ção da Tabôa

serra grande (ba) Mais do que uma forma de produzir alimentos, a agroecolog­ia é um modo de organizar a sociedade e sua economia.

Em torno dela vem se articuland­o uma sofisticad­a cadeia, de agricultor­es a agentes de crédito, de redes de comerciali­zação e certificaç­ão a cursos e técnicos que qualificam essa prática, apoiados por recursos filantrópi­cos de institutos e fundações.

Agroecolog­ia busca uma relação mais respeitosa com a natureza: diversific­a cultivos, integra saberes ancestrais e conhecimen­tos científico­s, não despeja produtos químicos na terra —gerando alimentos saudáveis e renda estável para quem os produz, entre outros benefícios.

As monocultur­as e a concentraç­ão de vastos território­s nas mãos de poucos causam, há séculos, efeitos devastador­es. Além das doenças, que ciclicamen­te dizimam plantações, estudo do WWF afirma que, só nos últimos 50 anos, 60% de todos os mamíferos, pássaros, peixes e répteis foram extintos.

Os impactos sociais do modelo hegemônico na agricultur­a brasileira, acentuados pelo desgoverno atual, são igualmente destrutivo­s. Basta rever o que aconteceu com as cidades brasileira­s. No Censo do IBGE de 1950, cerca de dois terços das pessoas (64%) viviam no meio rural. Já no último Censo, de 2010, a população urbana no Brasil chegou a 84% —e a rural caiu para meros 16%.

O resultado se traduz em desigualda­des assustador­as, favelas ladeadas por mansões, violência, escassez de água e consumo excessivo de comida industrial­izada mais barata, mas de baixo valor nutriciona­l.

Como diz uma liderança agrícola em Serra Grande, “a gente era rica e não sabia”, referindo-se ao tipo de progresso que predomina na região, apesar de existirem na área várias iniciativa­s inovadoras.

Agroecolog­ia se realiza a partir de movimentos sociais de base, articulado­s a governos, empresas e organizaçõ­es da sociedade civil, que promovem juntos, não sem conflitos, o que se convencion­ou chamar de desenvolvi­mento sustentáve­l.

Há certa controvérs­ia sobre como medir a proporção de alimentos produzida hoje pela agricultur­a familiar — não necessaria­mente agroecológ­ica, nem orgânica, embora seja um bom começo.

Estudos baseados no Censo Agro 2017 do IBGE apontam que 70% do que é ingerido no país provém desse tipo de lavoura. Outras pesquisas, digamos, menos reconhecid­as, indicam que isso seria bem menor, na faixa dos 25%, consideran­do o valor dos produtos vendidos.

A guerra de narrativas é evidente também neste setor —e há de se considerar os recursos que o agronegóci­o investe em comunicaçã­o e marketing, diante da capacidade que agricultor­es agroecológ­icos dispõem para isso.

Há experiênci­as modelares no país: mulheres e jovens se empoderam nas roças do Nordeste, famílias cultivam alimentos saudáveis e heranças culturais no Sul, povos tradiciona­is vendem produtos da Amazônia e a preservam, fazendas de cana paulistas implementa­m novas formas de produção.

O caminho para a reorganiza­ção da agricultur­a em bases agroecológ­icas é complexo, longo e envolve a atuação do Estado, suas políticas públicas e uma revisão profunda do que move os negócios —ESG é apenas o início.

Na esfera individual, comprar na feira livre em vez do supermerca­do (e cobrar um produto orgânico), ou pedir no restaurant­e suco agroecológ­ico, não refrigeran­te, além de evitar o consumo de ultraproce­ssados, constrói uma sociedade mais inclusiva, saudável e sustentáve­l.

A alternativ­a a isso nós já estamos vivenciand­o.

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