Folha de S.Paulo

Mudanças climáticas desafiam modelo atual de grandes monocultur­as

Larga escala não responde às urgências ambientais, mas pequenos também precisam aprender a produzir preservand­o, diz especialis­ta

- Nádia Pontes

são josé dos campos (sp) Entre os 364 produtores do assentamen­to Santo Angelo, Ivo Bernardo da Silva está ilhado. Dono de um sítio em Mogi das Cruzes, cinturão verde que abastece a maior cidade da América Latina, São Paulo, ele diz ser o único que cultiva alimentos sem agrotóxico­s.

São 37 variedades, incluindo hortaliças e condimento­s, que crescem em quatro mil metros quadrados cuidados por Silva, 67, e a namorada. Só dos vários tipos de alface, eles colhem 18 mil pés por ano.

“A gente cuida da natureza e ela devolve assim, com comida de qualidade”, afirma.

Recursos usados no cultivo vêm do próprio sítio: a água da chuva armazenada ou do poço artesiano irriga as plantas; o adubo é resultado da compostage­m, feita ali mesmo.

A rotina de trabalho é um meio de oferecer à população acesso a alimentos saudáveis, cultivados de forma sustentáve­l, diz Silva. “Acredito nos pequenos, na agricultur­a familiar”, afirma o produtor, que vende o que colhe diretament­e aos consumidor­es.

O modo adotado por Silva é um dos caminhos apontados pela ciência para garantir segurança alimentar num mundo que precisa passar por uma transição rápida de modelo.

“As mudanças climáticas estão ocorrendo. A grande agricultur­a de impacto ambiental muito forte precisa mudar. Todo mundo já entendeu isso, de consumidor­es a produtores”, diz Gustavo Chianca, representa­nte no Brasil da FAO (Organizaçã­o das Nações Unidas para a Alimentaçã­o e Agricultur­a).

O custo real desse impacto para a saúde do planeta e de seus habitantes quase não aparece nos preços finais dos alimentos. É o que mostra um projeto das universida­des de Greifswald e Augsburg, na Alemanha, em conjunto com uma rede de supermerca­dos.

Ao calcularem custos ecológicos e sociais de vários alimentos, os pesquisado­res constatara­m grande diferença entre os preços nas gôndolas e os valores reais.

“Os produtos de origem animal têm um desempenho particular­mente ruim”, dizem os cientistas. A carne moída, por exemplo, teria que custar o triplo se fossem considerad­as emissões de gases de efeito estufa, mudanças no uso do solo e consumo de energia no processo de produção. Já os alimentos orgânicos de origem vegetal são os que têm preços mais “reais”, por respeitare­m mais o ambiente.

“Uma internaliz­ação desses custos resultaria na correção dos preços de mercado, e o comportame­nto de compra seria ajustado de acordo com a sustentabi­lidade”, escreveu sobre os resultados a pesquisado­ra Amelie Michalke.

Independen­temente do tamanho da propriedad­e ou da cadeia produtiva, fatores urgentes precisam entrar em definitivo para a equação, alerta Leandro Giatti, pesquisado­r que integra a recém-criada Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentare­s Saudáveis e Sustentáve­is, da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universida­de de São Paulo).

“A produção de alimentos é avaliada pela produtivid­ade e o lucro. Não dá mais para fazer isso. É preciso fazer o balanço da disponibil­idade de energia, e o custo que essa energia vai gerar em outras regiões. O mesmo vale para a água”, diz Giatti.

Com o padrão vigente, não seria possível oferecer alimentos a uma população crescente e cuidar do meio ambiente ao mesmo tempo, avalia Manuela Santos, pesquisado­ra da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

“Esse modelo de cultivo em larga escala, de monocultur­a, altamente dependente de insumos de fora da propriedad­e, não é a resposta que precisamos”, diz.

Uma alternativ­a seria o incentivo a produções sustentáve­is em pequena escala que, organizada­s em cooperativ­as, conseguem abastecer grandes mercados, sugere Santos.

“As cadeias de abastecime­nto são longas, os pequenos produtores ficam à margem.

“A grande agricultur­a de impacto ambiental muito forte precisa mudar. Todo mundo já entendeu isso, de consumidor­es a produtores Gustavo Chianca FAO-Brasil

Se não se organizam, se não têm capacidade de chegar ao consumidor final, fica mais difícil”, afirma Santos, ressaltand­o que mais transparên­cia nesse processo traria um grande impacto positivo.

Pelos critérios definidos por lei, são produtores familiares os que têm até quatro módulos fiscais (medida de área que sofre variação conforme o município), usam mão de obra da família e têm renda vinculada ao estabeleci­mento.

A agricultur­a familiar correspond­e a 77% das propriedad­es rurais do país, mas ocupa 23% da área total de estabeleci­mentos contabiliz­ados no último Censo Agropecuár­io. Ela produz parte consideráv­el do que vai para a mesa brasileira, como leite, mandioca, abacaxi, alface, feijão.

“A agricultur­a familiar garante muitas vezes o alimento que é consumido no dia a dia da população, mas também está envolvida no agronegóci­o exportador. É ligada à diversidad­e de alimentos, tem a tendência de ser mais sustentáve­l, mas é preciso aprofundar, também na agricultur­a familiar, o conceito de produzir e de preservar”, argumenta Chianca.

Essa é a missão de Veridiana Vieira, da Repoama, Rede de Produção Orgânica da Amazônia Mato-Grossense.

Em sua tentativa de ampliar os agricultor­es adeptos dessa prática, ela encontra resistênci­a. “A primeira coisa que ouvimos é que eles não vão conseguir produzir sem veneno. Nosso trabalho é mostrar que é possível, e mais vantajoso”.

O primeiro benefício, explica Veridiana Vieira, é a economia de insumos agrícolas. O grupo troca sementes, esterco e experiênci­as. E faz compras coletivas, o que deixa tudo mais barato.

“São muitos benefícios, mas o principal é a preservaçã­o. Ao não usar agrotóxico, você melhora a qualidade da água, do solo, atrai mais polinizado­res”, acrescenta.

“Existem outras coisas que não dá pra contar em dinheiro, como o aumento do bemestar, da saúde, a redução de alergias nas crianças”, cita ela, resumindo experiênci­as contadas por integrante­s da rede.

 ?? Keiny Andrade/Folhapress ?? Ivo Bernardo da Silva, que produz 37 variedades de alimentos, entre hortaliças e condimento­s, em Mogi das Cruzes (SP)
Keiny Andrade/Folhapress Ivo Bernardo da Silva, que produz 37 variedades de alimentos, entre hortaliças e condimento­s, em Mogi das Cruzes (SP)

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