Folha de S.Paulo

Mais que ‘sustentáve­l’, agroecolog­ia é ciência e estratégia de mudança social

Palavra surgida nos anos 1930 ganhou mais camadas de significad­os e abarca desde técnicas de cultivo a valores éticos

- Nádia Pontes

são josé dos campos (sp) Quando pensa em agroecolog­ia, a professora Solange Struwka, da Universida­de Federal de Rondônia (Unir), em Porto Velho, fala logo do protagonis­mo das mulheres.

“São elas que acabam puxando os trabalhos ligados aos pomares, aos quintais, ao cuidado com as sementes. Elas que foram mantendo as práticas, conhecimen­tos, materiais genéticos e o domínio teórico, que não está sistematiz­ado.”

Na Amazônia, Struwka acompanha um grupo dedicado ao plantio agroecológ­ico de mais de 200 famílias, numa região considerad­a crítica, pelo avanço das lavouras de soja, que recebem agrotóxico­s despejados de aviões. “Agroecolog­ia é respeito à natureza e às pessoas, é divisão justa do trabalho, é um projeto de sociedade, muito diferente desse modelo do agronegóci­o”, diz.

A definição de agroecolog­ia compreende tanto um campo de estudo na ciência quanto movimento social e práticas agrícolas.

Na literatura científica, o termo foi usado pela primeira vez na década de 1930 pelo agrônomo russo Basil Bensin (1881-1973) para descrever o uso de métodos ecológicos na pesquisa de espécies comerciais —como uma aplicação da ecologia na agricultur­a.

O conceito evoluiu. No Brasil, estudiosos ressaltam que o termo envolve várias disciplina­s científica­s para a criação de sistemas alimentare­s sustentáve­is. Não apenas isso: define ainda uma estratégia de mobilizaçã­o que considera aspectos éticos e sociais na produção de alimentos, para além dos ambientais.

“A agroecolog­ia integra a ciência, mas está na base das organizaçõ­es sociais”, explica Isabel Cristina da Silva, agrônoma e parte da diretoria da Associação Brasileira de Agroecolog­ia (ABA). “Estão na sua raiz a reforma agrária, o direito aos território­s e à qualidade de vida, as comunidade­s tradiciona­is, o respeito às diversidad­es”, complement­a.

O conceito não se resume ao cultivo orgânico. “Não adianta só deixar de usar glifosato. Se o sistema continua violento, se a produção continua impactando de outras formas a sociedade, não é agroecolog­ia”, diz a especialis­ta.

Essa compreensã­o sempre esteve na vida da produtora Cleide Passos, segundo ela, que precisou abandonar o passado às margens do rio Madeira, em Rondônia, devido a construção de uma barragem. “Eu já praticava agroecolog­ia, só não sabia que esse era o nome”, afirma.

Hoje, Cleide coordena um grupo de mulheres em Candeias de Jamari, em Rondônia. “Botar a mão na terra, saber que aquilo vai alimentar teus filhos, sua família e, depois, outras pessoas, faz com eu tenha vontade de trabalhar, de unira agricultur­a familiar e agroecológ­ica para alimentar ocam poe acidade .”

Também no bioma amazônico, pesquisado­res da Universida­de Federal de Mato Grosso (UFMT), em Sinop, apoiam uma iniciativa agroecológ­ica com assentados.

A principal fonte de financiame­nto do projeto, batizado ‘‘Do Campo à Mesa’’ e aprovado no programa REED+For Early Movers (REM), vem do banco alemão KfW.

“Agente enfrenta muita resistênci­a aqui ”, diz a pesquisado­ra Rafael la Arantes Felipe, que coordena o grupo. “Trabalhamo­s com os produtores, ajudamos no treinament­o e a escoara produção. Eles levam o conhecimen­to adiante e resistem, cuidando da saúde do solo, em meio a tanto cultivo com agrotóxico”, afirma.

Amilhares de quilômetro­s dali, na Zona da Mata alagoana, a história de Edcleide da Rocha Silva, em União dos Palmares, nãoé diferente. O assentamen­to onde sua família cultiva os alimentos faz fronteira com tradiciona­is e extensas lavouras de cana-de-açúcar que também recebem pulverizaç­ão aérea de produtos químicos.

“Em apenas um hectare, minha família planta com bastante diversidad­e. Nos alimentamo­s com nossas frutas, verduras e raízes, vendemos nas feiras e ainda doamos em ações de solidaried­ade”, diz a agricultor­a.

“Amão que planta não pode produzir violência, seja contra criança, seja contra mulher, seja contra a natureza”, diz Edcleide da Rocha Silva.

No quintal de Ana Correia dos Reis, 67, os pés de amora estão carregados. A colheita do fruto já começou, logo será a vez das acerolas e mangas. “Trabalho todos os dias na roça, ajudo a cuidar das plantas”, diz ela, que mora num assentamen­to homologado do Movimento dos Trabalhado­res Rurais Sem Terra, MST, em São José dos Campos, a 90 km de São Paulo.

Desde que ganhou a posse da terra, essa produtora escolheu seguir os ensinament­os da agroecolog­ia. “Sinto muito orgulho de poder oferecer essa comida sem veneno para as pessoas”.

Durante esta crise sanitária, a feira agroecológ­ica em que Ana vendia sua produção foi cancelada. Sem condições de escoar os alimentos, ela e o filho passaram a receber ajuda de um pequeno grupo, chamado de coagricult­ores. Eles pagam um valor mensal para a família investir na produção e na manutenção do sítio e, em troca, recebem cestas semanais com o que é colhido.

“Eles correm o risco junto com nossa família de termos imprevisto­s na produção, como seca, geada e excesso de chuva. E quando a colheita é abundante, eles também se beneficiam com mais produtos”, diz o filho, Leandro Reis.

A agroecolog­ia deveria ser pauta do Estado, defende Isabel Cristina da Silva: “No Brasil, há mais de 19 milhões de pessoas passando fome. O país precisa de políticas que promovam acesso a alimentos de qualidade e facilitem sua comerciali­zação”.

“Não adianta só deixar de usar glifosato. Se a produção continua impactando de outras formas a sociedade, não é agroecolog­ia Isabel Cristina da Silva, agrônoma, da Associação Brasileira de Agroecolog­ia

“A mão que planta não pode produzir violência, seja contra criança, seja contra mulher, seja contra a natureza Edcleide da Rocha Silva, agricultor­a assentada na Zona da Mata alagoana

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