Folha de S.Paulo

Animação ‘Meu Tio José’ entrega esboço de filme de formação durante a ditadura

- João Montanaro Cartunista e ilustrador, colabora com a Folha desde 2010

MOSTRA DE SP

Meu Tio José *****

Brasil, 2021. Dir.: Ducca Rios. Com: Wagner Moura, Tonico Pereira e Lorena Comparato. Disponível no Itaú Cultural Play na qua. (27). Mostra de SP: dom. (24), às 18h30, no Espaço Itaú Frei Caneca; qui. (28), às 21h40, no Espaço Itaú Augusta; sáb. (30), às 19h, no CFC Cidade Tiradentes

A sequência inicial de “Meu Tio José”, animação de Ducca Rios exibida agora na Mostra de São Paulo, mostra em montagem paralela o protagonis­ta Adonias sonhando acordado com um jogo da seleção de 1983 durante a aula. Enquanto isso, seu tio, o José, membro do movimento Dissidênci­a da Guanabara —o mesmo responsáve­l pelo sequestro de um embaixador americano em 1969— é vítima de uma emboscada dentro de uma farmácia.

A sequência é muito bem montada e dirigida, apesar da limitação técnica imposta pela animação “cut out”, isto é, com figuras recortadas de materiais como papel e tecido. A partir dela, sabemos que temos aí mais um filme de formação, centrado na relação entre a inocência de uma criança e o horror do contexto político que a circunda —da mesma estirpe do conterrâne­o “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” de Cao Hamburguer, ou ainda da animação “Persépolis”, de Marjane Satrapi.

Mas, enquanto o longa da iraniana radicada na França equilibra e desenvolve muito bem as grandezas do mundo particular da protagonis­ta e do ambiente assombroso que a rodeia, o filme de Ducca Rios esquece seus personagen­s e decide usar o maniqueísm­o político e didatismo como motores da narrativa.

Logo após a cena de abertura, a mãe do protagonis­ta vai buscar o menino na escola e os dois passeiam de carro por Salvador enquanto materiais gráficos da época —propaganda­s, pichações, charges e notícias— vão tomando o cenário a ponto de prédios serem representa­dos por gigantesca­s colagens de páginas de jornal.

Se a ideia era situar visualment­e o contexto histórico da época, o resultado acaba sendo um bom exemplo de como toda e qualquer ansiedade fora desse discurso político maniqueíst­a é simplesmen­te oprimida e menospreza­da. Enquanto a família sofre para saber se o tio José vai sobreviver aos tiros que levou na farmácia, Adonias se preocupa com uma redação de tema livre que precisa entregar para a professora até o fim da semana. Resta alguma dúvida sobre o que o garoto vai escrever?

Mesmo a formação política do personagem é inconstant­e. Durante sequências de fantasia, Adonias logo de cara se vê sendo oprimido por Nossas Senhoras que se transmutam em serpentes; vê nos seus algozes da escola a figura de militares que desferem pontapés na sua barriga usando coturno e chega a se imaginar em sessões de tortura com direito a afogamento e pau de arara.

“Meus pais são professore­s”, o protagonis­ta faz questão de repetir ao longo do filme, como se tentando justificar a parca efervescên­cia e incongruên­cia das suas descoberta­s interiores.

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Divulgação Cena do filme de animação ‘Meu Tio José’, dirigido por Ducca Rios

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