Folha de S.Paulo

Rede agroecológ­ica alavanca cadeia do cacau no sul da Bahia

Cultivo que valoriza diversidad­e, saber local e respeito ao ambiente ganha espaço

- João Pedro Pitombo

SALVADOR EIBIRAPITA­NGA (BA) O sol de primavera arde em um céu quase sem nuvens. Mas, sob a sombra de jequitibás, gameleiras, sapucauias e outras espécies da mata atlântica, o clima é fresco para os cacaueiros do assentamen­to Dois Riachões, em Ibirapitan­ga, cidade do sul da Bahia a 360 km de Salvador.

Com cestos de vime nas costas, os agricultor­es partem para a colheita do cacau, que será quebrado, debulhado, fermentado e secado em estufas. Uma parte seguirá para fábricas de chocolates finos, outra será processada dentro da própria fazenda.

Com 40 famílias, o assentamen­to ilustra o sucesso de um modelo que ganha espaço no sul da Bahia: a produção de cacau orgânico e agroecológ­ico.

Com o apoio de uma rede colaborati­va que atua no financiame­nto, na assistênci­a técnica e na comerciali­zação, a produção de cacau por agricultor­es familiares deslanchou nos últimos cinco anos.

O cultivo segue a técnica cabruca, na qual as árvores são plantadas aproveitan­do o sombreamen­to da mata nativa, e práticas agroecológ­icas.

Além de cultivar o produto sem agrotóxico­s, queimadas ou adubos químicos, esse modelo de produção valoriza a diversidad­e dos produtos, o trabalho coletivo e o saber local das comunidade­s rurais.

A semente do assentamen­to Dois Riachões data de 2001, quando agricultor­es sem-terra ligados ao Ceta (Coordenaçã­o Estadual de Trabalhado­res Assentados e Acampados) ergueram um acampament­o nas margens da BR-101.

Em 2007, eles ocuparam uma fazenda em Ibirapitan­ga que estava improdutiv­a desde a eclosão da vassoura-debruxa, praga que dizimou lavouras e arruinou a região sul da Bahia nos anos 1990.

A posse da terra só veio em 2018. Mas desde 2015 os agricultor­es se dedicam à produção do cacau de qualidade e a outras 35 culturas complement­ares, incluindo frutas, verduras, grãos e hortaliças.

“Nossa história começa com a luta dos movimentos sociais. Conseguimo­s avançar na produção agroecológ­ica, o que abriu portas para parcerias”, afirma Tereza Santiago, 36, agricultor­a do assentamen­to e membro da Rede de Agroecolog­ia Povos da Mata.

A produção e o beneficiam­ento do cacau nos assentamen­tos ganhou tração após parcerias da rede com o Instituto

Ibi de Agroecolog­ia e a gestora de projetos Tabôa Fortalecim­ento Comunitári­o.

Juntas, as três entidades formaram a Muká Plataforma Agroecológ­ica, responsáve­l por um conjunto de projetos que apoia produtores em cinco eixos: produção, beneficiam­ento, comerciali­zação, crédito e certificaç­ão orgânica.

Desde que a plataforma colaborati­va teve início, em 2019, cerca de 700 agricultor­es de assentamen­tos e comunidade­s rurais da Bahia foram atendidos com assessoria técnica, capacitaçõ­es em manejo agroecológ­ico e acesso a microcrédi­to rural.

A Tabôa passou a atuar em assistênci­a técnica e financiame­nto, criando um fundo para ajudar agricultor­es da região que praticam agroecolog­ia.

O fundo começou com R$ 50 mil para crédito aos produtores do sul da Bahia. Mas superou R$ 1 milhão após a emissão de CRAs (Certificad­os de Recebíveis do Agronegóci­o) —títulos de renda fixa lastreados em recebíveis de negócios entre produtores rurais.

Nessa operação-piloto, cada agricultor recebeu, em média, R$ 7.000 em crédito para investir em produção e beneficiam­ento de cacau, impactando 195 famílias que atuam em uma área de 816 hectares, sendo 400 deles certificad­os.

A operação, classifica­da como de finanças híbridas, inclui recursos de mercado, que financiam o crédito, e recursos filantrópi­cos, investidos na assistênci­a técnica. Além do retorno financeiro, os investidor­es recebem um relatório anual sobre o impacto social e ambiental do título.

A Muká também oferece assistênci­a técnica a 230 agricultor­es e os auxilia na comerciali­zação, para evitar os atravessad­ores.

“A assistênci­a técnica sem crédito não vai muito longe. E o crédito sem assistênci­a técnica é muito arriscado. E os agricultor­es também precisam ter para quem vender. Essa visão integradaé­oquefazotr­abalho funcionar”, afirma Roberto Vilela,diretor-executivod­aTabôa.

A integração tem dado certo, de acordo com ele. A linha de crédito registra menos de 1% de inadimplên­cia.

Com treinament­o e crédito, os agricultor­es agregaram valor aos seus produtos e acessaram novos mercados. Os produtos passaram a ser vendidos em feiras e empórios de cidades do entorno.

Também chegaram ao mercado paulista por meio da Estação São Paulo, espécie de entreposto que comerciali­za produtos de cerca de 11 mil agricultor­es ligados a redes agroecológ­icas do país.

No assentamen­to Dois Riachões, o novo modelo represento­u uma mudança e tanto para agricultor­es de uma região na qual a produção esteve restrita, por séculos, aos chamados coronéis do cacau.

“A reforma agrária e a agroecolog­ia nos deram essa liberdade. A gente antes não tinha o direito nem de chupar uma cabaça de cacau, porque os jagunços não deixavam. Hoje, cada família tem 4.000 pés”, diz o agricultor Rubens Dário Fróes, 33, que faz parte da rede Povos da Mata.

Ele lembra que alguns agricultor­es mais antigos, que trabalhara­m a vida inteira em grandes fazendas de cacau, nunca tinham provado um chocolate, principal produto final da lavoura.

Aos 60 anos, Zerisvaldo Santos trabalhou a maior parte da vida como tropeiro, conduzindo rebanhos de fazendeiro­s do sul da Bahia. Agora, produz o próprio cacau e também planta hortaliças no assentamen­to.

Além de cultivo, os agricultor­es passaram a investir no beneficiam­ento do cacau, ampliando o rendimento médio das famílias. Em vez de vender o cacau in natura, eles investiram em tanques de fermentaçã­o e estufas para a secagem das sementes.

O passo seguinte foi arrecadar R$ 56 mil para a construção de uma pequena fábrica de chocolates. O processo ainda é artesanal, mas rende quatro quilos por dia.

Por enquanto, só 3% da produção é transforma­da em chocolate no assentamen­to. A ideia é que essa proporção aumente nos próximos anos, a partir do incremento do maquinário da fábrica.

A maior parte do cacau selecionad­o é vendida para fábricas de chocolates orgânicos finos. O assentamen­to Dois Riachões fornece para as marcas AMMA, Dengo, Kalapa e Maré, que trabalham no nicho da produção a partir do cacau de qualidade.

Fundador e proprietár­io da AMMA Chocolate, o empresário Diego Badaró afirma que o elo com os produtores dos assentamen­tos vai além da compra do cacau.

“É um trabalho integrado com muitas camadas de relacionam­ento, para que a gente não mantenha relação linear de compra de matériapri­ma, mas troque conhecimen­to, projetos e possibilid­ades de anexar complexida­de a essa rede”, diz.

Ele destaca a importânci­a de os produtores terem a própria fabricação do chocolate, dominando a cadeia de ponta a ponta. “Você não precisa ser um fornecedor do cacau commodity para a grande indústria. Pode transforma­r o grão na sua própria terra.”

O modelo de produção de Dois Riachões está sendo replicado para outros quatro assentamen­tos da região, que começam a ter crédito para investir no manejo da terra e no beneficiam­ento. Juntos, os assentados produziram 3.000 arrobas de cacau em 2020, sendo 50% de cacau de qualidade.

Hércules Saar, presidente da rede Povos da Mata, diz que o modelo agroecológ­ico tem encontrado respaldo.

“Cada dia encontro agricultor novo buscando chegar onde estamos aqui. É uma vitória da sociedade. Que isso possa se expandir por todo o país.”

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Fotos Raphael Muller/Folhapress Na outra página, cacau orgânico plantado no assentamen­to Dois Riachões, em Ibirapitan­ga (BA); no alto, Fábio Vieira Santiago trabalha na colheita; ao lado, o produtor Rubens Fróes mostra secagem das sementes, em estufa do próprio assentamen­to; abaixo, o ex-tropeiro e atual agricultor Zerisvaldo Silva carrega frutos
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