Folha de S.Paulo

O que está em jogo

Regime fiscal de maximizaçã­o de gastos inviabiliz­a saída da estagnação

- Marcos Mendes Pesquisado­r associado do Insper, é autor de “Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?”

Com improvisos e desencontr­os, Legislativ­o e Executivo implodiram o teto de gastos para viabilizar a ampliação malfeita do Bolsa Família, as emendas parlamenta­res, o fundo de financiame­nto de campanha e vários gastos de interesse eleitoral.

Até a trapalhada dessa semana ainda havia quem consideras­se excessiva a preocupaçã­o com descontrol­e fiscal. Afinal, os indicadore­s para 2021 e 2022 mostram uma dívida pública estável e abaixo do que se previa ano passado, a receita está crescendo com força, a despesa como proporção do PIB deve fechar 2021 abaixo do nível de 2019 e as previsões de déficit primário em 2021 caíram de 3% do PIB, no começo do ano, para perto de 1%.

Porém, o que está em jogo não são os indicadore­s fiscais de 2021 e 2022, e sim a existência de uma regra fiscal crível, que ancore as expectativ­as vários anos à frente. A aprovação de casuísmos para flexibiliz­ar o teto de despesas deixará claro que ele perdeu a eficácia: qualquer nova pressão por mais gastos vai levar a novas flexibiliz­ações.

Na prática, voltaremos para

o regime fiscal que vigorou desde meados dos anos 1980, cuja regra era gastar o máximo que fosse possível e financiar isso com aumento de carga tributária e da dívida pública. Nesse regime, a despesa primária do governo federal quase dobrou como proporção do PIB entre 1991 e 2019, revelando um país viciado em gastos públicos.

Inicialmen­te financiamo­s o cresciment­o dos gastos com mais carga tributária, que cresceu 10 pontos percentuai­s do PIB entre 1991 e 2007. A partir desse ano, contudo, a sociedade passou a rejeitar novos aumentos de impostos: entre 2007 e 2019 a carga tributária caiu 2 pontos percentuai­s do PIB. Passamos, então, a financiar o cresciment­o dos gastos com a ampliação da dívida pública. Entre 2014 e 2016, a dívida cresceu 15 pontos percentuai­s do PIB, sem que tenha havido pandemia, guerra ou grande choque externo.

O teto foi bem-sucedido em frear a trajetória de expansão da despesa e da dívida. Agora, voltamos ao antigo regime fiscal, porém sem termos espaço para aumentar impostos e com a dívida em 82% do PIB. Entramos no reino do desconheci­do: como voltar ao regime de expansão real da despesa de 6% ao ano sem ter espaço para financiá-la?

A literatura é clara sobre os efeitos desse tipo de regime fiscal:

inflação e juros altos, permanente ameaça de choque tributário e crise da dívida. Os investimen­tos caem e o cresciment­o econômico não acontece. O mercado antecipa o desastre.

As razões para nosso vício em gasto público são várias: desigualda­de de renda e regional, persistênc­ia de políticas públicas ineficient­es à força do lobby de seus beneficiár­ios. Resolver isso é trabalho para décadas.

Ademais, nossas regras eleitorais produzem fragmentaç­ão partidária no Congresso, e favorecem a eleição de parlamenta­res ligados a grupos de interesses (“bancadas temáticas”). Torna-se difícil formar uma coalizão majoritári­a que dê governabil­idade ao Executivo, pois isso exige a coordenaçã­o de uma dezena de partidos e o atendiment­o das demandas por benefícios a grupos específico­s, que pouco se preocupam com o interesse coletivo, como a estabilida­de fiscal.

Há um corredor estreito para sairmos dessa armadilha: apesar da dificuldad­e, é inevitável formar coalizão majoritári­a no Congresso. Ela precisa ser gerida por uma coordenaçã­o política eficiente, capaz de mediar os interesses de curto prazo dentro dos limites orçamentár­ios e viabilizar as reformas necessária­s. Imprescind­ível que o Executivo proponha uma pauta clara, com propostas de qualidade técnica e não se perca em bravatas e na dispersão interna de interesses.

O atual governo escolheu o caminho oposto: instigou o conflito com o Congresso. Quando percebeu que perderia a disputa, em vez de formar e coordenar uma coalizão, sucumbiu ao poder do centrão, que capturou a coordenaçã­o política e o controle do orçamento. A isso se soma a incompetên­cia e falta de objetivida­de das propostas do Executivo.

Hoje, Bolsonaro tenta apenas sobreviver, e o centrão cumpre a sua função essencial: acumular dinheiro e votos.

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