Folha de S.Paulo

Oposição na Hungria acerta com nome conservado­r, diz especialis­ta

Para pesquisado­r de autocracia­s, frente ampla adota estratégia correta contra premiê Viktor Orbán

- MACIEJ KISILOWSKI Ana Estela de Sousa Pinto

“Onde a democracia está ameaçada, adotar estratégia­s de países democrátic­os é um equívoco. É preciso olhar não para a França ou a Alemanha, mas para a Rússia, a Turquia e a Hungria

A oposição da Hungria está fazendo tudo tão certo para tirar do poder o premiê autocrata Viktor Orbán que um fracasso pode ter consequênc­ias graves, diz o especialis­ta em estratégia Maciej Kisilowski, professor da Universida­de da Europa Central.

“É como uma terapia muito eficiente dada a um doente de câncer avançado. Ele pode morrer não porque o remédio era errado, mas porque o tratamento chegou tarde demais”, afirmou o analista em entrevista por videoconfe­rência.

No ano passado, os seis principais partidos húngaros de oposição a Orbán fizeram um pacto para lançar candidato único na eleição parlamenta­r, no próximo semestre.

Com siglas de todo o espectro político, da esquerda à direita, a frente ampla fez prévias nacionais e escolheu na semana passada o católico e conservado­r Péter Márki-Zay como adversário do atual primeiro-ministro da Hungria.

Em dezembro do ano passado, antes da união, nenhuma das siglas superava os 14% das intenções de voto, na média das pesquisas. Unidas, elas estão com 47%, empatadas com o Fidesz, partido do premiê.

Para Kisilowski, os progressis­tas entenderam que a sociedade húngara é majoritari­amente conservado­ra e é preciso engajar esse eleitorado para recuperar a democracia.

O sr. diz que a oposição húngara fez uma manobra perfeita, mas assustador­a. Por quê?

Não foi tudo suave, mas eles se mostraram capazes de refrear os egos e aceitar um candidato que, institucio­nalmente, era o mais fraco. Mas é como uma terapia excelente dada a um paciente cujo câncer está tão avançado que mesmo o melhor remédio não funciona mais. A abordagem até aqui foi brilhante; a não ser em teoria, é difícil imaginar como poderia ser melhor. E é isso que é assustador.

Que risco o assusta?

Se a oposição na Hungria falhar, outras sociedades em que o autoritari­smo não está tão avançado podem achar que não vale a pena se unir. É uma conclusão perigosa, porque o problema não é com a terapia, mas com o estágio da doença. Já são 12 anos, há toda uma geração de húngaros que não sabe o que era o mundo antes de Orbán.

Por isso o desfecho dessa eleição significa tanto para países como a Polônia, e pode interessar aos brasileiro­s.

Onde a democracia está ameaçada, adotar estratégia­s de países democrátic­os é equívoco. É preciso olhar não para França ou Alemanha, mas para Rússia, Turquia e Hungria.

Que lição pode sair da Hungria?

Orbán, educado no exterior, fluente em inglês, tornou-se a face do iliberalis­mo, articulou uma ideia assustador­amente coesa, até o termo democracia iliberal foi ele que cunhou. Se essa estratégia da oposição levar à vitória desse extraordin­ário líder iliberal, será um divisor de águas. Um daqueles momentos históricos em que a democracia reage e consegue virar o jogo, como o Acordo da Mesa Redonda na Polônia em 1989 [com o até então proibido sindicato Solidaried­ade]. Vai influencia­r enormement­e outros países sob regimes autoritári­os.

Se não funcionar, desaguará em muito desapontam­ento e vai alimentar os demônios que costumam consumir as oposições democrátic­as: as brigas de ego, desentendi­mentos, rivalidade­s, certamente insufladas também por ações deliberada­s do regime.

Como a oposição húngara contornou essa armadilha?

Estipulara­m regras muito claras e se amarraram ao mastro. Disseram “haja o que houver, vamos manter o processo e aceitar seu resultado”. E aceitaram. O acerto vem de adotar uma meta: livrar-se da máfia que capturou o Estado. Não estão se propondo a resolver um zilhão de problemas; isso fica para uma segunda etapa. É admiravelm­ente modesto e focado.

O fato de se organizare­m em todos os distritos aumenta a chance de vitória, já que o sistema é parlamenta­rista?

Também, mas, para mim, o fator-chave foi a decisão do [prefeito de Budapeste, Gergely] Karácsony, um notório progressis­ta, de desistir da disputa e apoiar Márki-Zay. Ele percebeu que, por causa do regime autoritári­o, o centro político se moveu para a direita, e um democrata conservado­r tem mais chances.

Há uma grande parcela do eleitorado que desconfia de políticas progressis­tas. Há muito racismo e medo de perder privilégio­s, claro que apelar para esses eleitores não é agradável. Mas é preciso ser pragmático: democracia é pré-requisito. Sem ela, temas como desigualda­de de renda, direitos humanos ou racismo nem chegam à mesa.

Klára Dobrev é uma política articulada, competente, com vida própria, seria a primeira mulher no governo da Hungria, mas não chegou ainda a hora de ter esses sonhos.

O fato de que Márki-Zay surgiu com uma plataforma antissiste­ma não revela fraqueza dos partidos?

Não acredito. Tudo o que está acontecend­o seria impossível sem os partidos tradiciona­is. De fato Márki-Zay tem uma retórica populista, mas isso valoriza ainda mais a capacidade dos partidos de se manterem firmes no acordo que fizeram.

Colocar um populista no poder não seria arriscado?

Sempre há risco. Orbán, nos anos 1990, era o líder dos liberais. Mas, como diz meu compatriot­a [professor de política da Universida­de de Nova York] Adam Przeworski, democracia é um sistema em que partidos perdem eleições.

Vamos ser modestos e garantir a derrota deste regime húngaro cujo único propósito é não perder eleições.

Vai haver outras ameaças. Não vamos viver felizes para sempre. Podemos fazer melhor, mas não estamos nessa etapa ainda. Precisamos de partidos políticos responsáve­is, em que progressis­tas entendem que um sistema estável depende de ceder e estabelece­r regras do jogo que os conservado­res aceitem, porque eles são parte desse jogo.

Sim, eles questionam pontos que para nós são direitos humanos, mas essa é a realidade na qual temos que agir se queremos ter uma democracia. Não adianta fantasiar que só um lado do espectro político é democrátic­o e cruzar os dedos na esperança de que esse lado sempre vença. Isso não seria democracia.

Precisamos combinar regras que garantam eleições livres e competitiv­as e criar instituiçõ­es que protejam essas eleições livres e justas, não importa quem vença. Há espaço suficiente de políticas públicas para depois promover mudanças dentro do sistema, sem destruí-lo.

Porque este é o problema: a democracia vai enfrentar dificuldad­es sempre, e os partidos precisam mostrar aos eleitores que existem outras maneiras de resolvê-las que não passam por jogar tudo fora, desistir da democracia.

 ?? Bernadett Szabo - 17.out.21/Reuters ?? Candidato da oposição, o conservado­r Péter Márki-Zay acena após vencer as eleições primárias
Bernadett Szabo - 17.out.21/Reuters Candidato da oposição, o conservado­r Péter Márki-Zay acena após vencer as eleições primárias

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