Fãs de Kim Jong-un, brasileiros enaltecem Coreia do Norte
Institutos fazem apologia da ditadura comunista e culpam EUA por ‘distorções’
Em setembro de 2018, a Coreia do Norte promoveu um dos desfiles militares que fazem a fama do país, ainda mais grandioso porque comemorava os 70 anos de criação da ditadura comunista.
Da tribuna, a poucos metros do líder Kim Jong-un, o brasileiro Lucas Rubio acompanhava a parada de soldados e armamento pesado. “No fim do evento, o marechal Kim foi falar com algumas pessoas, e como eu estava bem acima, consegui vê-lo muito próximo. Ele acenou para nós”, diz.
A presença em local privilegiado se deve aos contatos que Rubio, 24, construiu com os norte-coreanos pela atuação como presidente do Centro
de Estudos da Política Songun, criado em 2017. A entidade é parte de uma confraria de movimentos e associações que fazem apologia do regime em redes sociais, palestras, lives e livros, entre outros meios.
A tônica geral é exaltar os progressos militares da Coreia do Norte e rebater as evidências de repressão política e crise econômica no país, atribuindo-as a uma campanha de difamação dos EUA.
“Na guerra de narrativas, a Coreia do Norte perde feio no Ocidente. Nos EUA, muitas pessoas não têm o que comer, negros são mortos nas ruas, mas parece que o problema é que coreanos não podem ouvir Justin Bieber”, afirma Rubio, que estuda letras na UFRJ com especialização em russo e dá aulas do idioma.
O centro foi fundado numa sala da UFRJ. Tem cerca de dez pessoas dedicadas de maneira mais efetiva, todas voluntárias. Realiza debates mensais no YouTube que reúnem cerca de cem espectadores. Antes da pandemia, fazia eventos presenciais. O perfil da entidade no Twitter reúne 21 mil seguidores, e o site, atualizado com frequência, tem cerca de 7.000 acessos por mês.
A “Política Songun”, que batiza o centro, é um dos pilares do regime norte-coreano e privilegia o papel das Forças Armadas como motor do desenvolvimento do país. A palavra significa algo como “militares em primeiro lugar”. A Coreia do Norte tem um dos maiores Exércitos do planeta, com 1,3 milhão de pessoas.
Cada novidade bélica ou teste com míssil ganha tons épicos nos canais da entidade brasileira. “Coreia do Norte inaugura exposição militar impressionante com novíssimos armamentos” foi a manchete do site em 12 de outubro. “As pessoas pensam que os norte-coreanos investem milhões apenas para ter um Exército mais forte, mas também é uma forma de desenvolver a economia e a ciência. Grande parte da tecnologia militar também é usada em áreas civis, como no programa espacial”, diz Rubio.
Além disso, afirma ele, as armas são apenas para autodefesa, num país que tecnicamente segue em guerra com a Coreia do Sul, embora o conflito tenha se encerrado em 1953.
Morador de Duque de Caxias (RJ), Rubio explica que começou a se interessar pela Coreia do Norte há cerca de dez anos, quando morreu Kim Jong-il, pai do atual ditador. “O que me impressionava era que não havia a versão dos norte-coreanos sobre o que acontecia. Comecei a buscar blogs, sites e livros e percebi que a coisa era muito mais complexa do que apenas uma ditadura brutal.”
Entre os entusiastas do regime, a historiadora Rosanita Campos, 68, é uma espécie de decana. Ela coordena o Instituto da Amizade Brasil-Coreia, fundado em 1995. Também já teve a experiência de ficar perto de um Kim —no caso, de Kim Il-sung, fundador do regime comunista e avô do atual dirigente. “Eu o conheci pessoalmente, participei do último aniversário dele em vida, na primeira vez que fui à Coreia, em 1994. Foi super simpático, falou que queria ir ao Brasil.”
Sua relação com o país começou na militância no MR-8, grupo de esquerda brasileiro. “É um povo muito unido, valente, simples, educado, culto. Todos lá conhecem literatura ocidental, americana. Todo mundo é graduado”, afirma. Campos afirma que o instituto que coordena não tem relação com partidos, embora ela seja filiada ao PCdoB, e que é mantido de forma voluntária.
Um dos objetivos da entidade, diz ela, é desfazer mitos, como a repressão do regime a opositores. Segundo relatório de 2020 da Anistia Internacional, a Coreia do Norte mantém cerca de 120 mil dissidentes sujeitos a tortura, trabalho forçado e maus tratos em quatro campos de prisioneiros.
“Esses relatos são montados na Coreia do Sul por americanos. Uma das coisas que a Coreia do Norte reclama é a devolução das pessoas que os sul-coreanos sequestram e dizem ser dissidentes”, afirma.
Também há distorção, afirma Campos, nos relatos sobre crises de fome no país. Na mais recente, em 2019, agências da ONU disseram que 10 milhões de pessoas, ou 40% da população, estavam sob risco, após uma safra afetada pela seca. “Tem pobreza, há momentos em que existe distribuição de alimentos maior ou menor. Mas fome a população não passa”, afirma.
Outro pilar do regime é a chamada “ideologia juche”, algo que poderia ser traduzido como autossuficiência, tanto econômica como espiritual. “É uma concepção filosófica que debate o que é o homem, qual o papel das pessoas no mundo e como isso se relaciona com a luta pelo socialismo”, diz Gabriel Martinez, 31, que preside o Centro de Estudos da Ideia Juche, criado em 2011.
Atualmente em Pequim, onde faz mestrado em filosofia, ele toca a entidade a distância, com colegas no Brasil. As cerca de dez pessoas envolvidas divulgam textos, participam de lives e produzem livros sobre socialismo publicados pela editora Nova Cultura, especializada em literatura marxista.
“Existe uma campanha de demonização do sistema político norte-coreano. Não é muito diferente do que acontecia com a União Soviética”, diz ele, que já foi cinco vezes à Coreia do Norte, a última em 2019.
Martinez reforça a visão de que os relatos sobre fome no país são exagerados. “Se comparar as cidades do interior com a capital, óbvio que vai ter mais pobreza, mas não há pessoas miseráveis”, diz.
A agricultura, diz, é mecanizada e produtiva, mesmo num contexto difícil. “Eles sofrem problemas devido ao bloqueio e às sanções, têm dificuldade de ter acesso a divisas internacionais, a petróleo.”
Já a falta de democracia, afirma Martinez, é algo que deve ser relativizado. “Óbvio que não é uma democracia liberal, nos moldes ocidentais, mas é uma democracia popular.”
Em coro, todos se dizem favoráveis à reunificação do país, algo defendido quase universalmente nas duas Coreias. Mas conforme o tempo passa, dizem, os dois países ficam mais distantes culturalmente, e a junção se torna mais complicada. Uma prova disso, afirma Rubio, é a série sulcoreana “Round 6”, que virou febre mundial e mostra um jogo de sobrevivência macabro para pessoas endividadas.
“Essa produção mostra um sistema desumano, em que as pessoas só pensam no enriquecimento individual. Na Coreia do Norte todos têm trabalho, educação e moradia garantidos pelo Estado. Não precisam se preocupar.”