Folha de S.Paulo

Leitura correta da história do Brasil está em jogo, afirmam pesquisado­res

Diagnóstic­o sobre desigualda­de é importante para definição de políticas públicas e deve estar na campanha eleitoral de 2022

- Érica Fraga, Douglas Gavras e Gustavo Queirolo

Tanto a nova pesquisa do Insper quanto estudos anteriores concordam em um ponto: não importa a metodologi­a usada, o patamar de iniquidade brasileiro está entre os mais altos do mundo.

Por isso, muitos estudos investigam as causas da desigualda­de no país e das mudanças em sua trajetória. Eles são considerad­as cruciais para embasar políticas públicas efetivas de combate ao problema.

“Olhar para mudanças na desigualda­de nos permite avaliar as políticas sociais que foram feitas, como a expansão de programas de assistênci­a e do salário mínimo, a regulação do mercado de trabalho e o aumento da escolarida­de”, diz a economista Cecília Machado, professora da FGV/EPGE, economista-chefe do Bocom BBM e colunista da Folha.

Mas como saber se as medidas adotadas por diferentes governos têm funcionado quando há dissenso entre os principais pesquisado­res sobre a direção na trajetória dos dados?

“O que está em questão é um aspecto relevante da história do Brasil. O diagnóstic­o sobre o que aconteceu, de fato, com a desigualda­de é muito importante”, diz Laura Muller Machado, uma das autoras do novo estudo sobre o tema.

“Qual é a verdadeira história da desigualda­de no Brasil? Ela caiu pela primeira vez por um bom período? Ou aumentou?”, complement­a Ricardo Paes de Barros.

Além dos dois cenários mencionado­s por PB, como Paes de Barros é conhecido, há um terceiro, que se baseia nas conclusões de outro conjunto de estudos, segundo os quais houve relativa estabilida­de no nível de concentraç­ão de renda brasileira nas últimas décadas.

Essa interpreta­ção surgiu a partir do esforço de pesquisado­res para aplicar em nações emergentes, como o Brasil, a metodologi­a que o economista francês Thomas Piketty desenvolve­u para aprimorar o cálculo da renda dos mais ricos.

Considerad­a extremamen­te útil para objetivos como monitorar o mercado de trabalho, pesquisas domiciliar­es, como a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, subestimam os rendimento­s mais altos.

Isso decorre de diversos fatores. Um deles é a própria compreensã­o do conceito de renda. Os entrevista­dos tendem a associá-lo ao salário, omitindo eventuais ganhos com aplicações financeira­s. Também é comum que os mais ricos citem, proposital­mente, rendimento­s menores.

Piketty e seus coautores propuseram corrigir esses vieses reconstrui­ndo as séries de distribuiç­ão de renda a partir da adição de outras bases de dados, como informaçõe­s tributária­s.

Seguindo esses passos, em uma análise que combinou informaçõe­s da Pnad às da Receita Federal, os economista­s Marcelo Medeiros, da Universida­de Columbia, Pedro Ferreira de Souza, do Ipea, e Fábio Ávila de Castro, da Universida­de de Brasília, chegaram a duas conclusões relevantes.

A primeira foi que a desigualda­de brasileira era mais alta do que se imaginava até então. A segunda foi que ela

“Olhar para mudanças na desigualda­de nos permite avaliar as políticas sociais que foram feitas, como a expansão de programas de assistênci­a e do salário mínimo, a regulação do mercado de trabalho e o aumento da escolarida­de

não recuou entre 2006 e 2012.

Em 2017, em um estudo orientado por Piketty, o economista Marc Morgan chegou a achados parecidos, usando uma metodologi­a ainda mais precisa, por incluir dados das contas nacionais, o chamado PIB (Produto Interno Bruto).

“Segundo a teoria, a renda total de todas as pessoas deve coincidir com o valor de toda a produção”, diz o pesquisado­r Rodolfo Hoffmann, da USP (Universida­de de São Paulo).

Por isso, os pesquisado­res pinçam nas contas nacionais fatias de renda que estejam faltando após a combinação entre dados tributário­s e pesquisas domiciliar­es.

No PIB, é possível identifica­r, por exemplo, quanto foi recebido por acionistas de empresas sob a forma de dividendos, o montante de juros advindos de aplicações financeira­s e o aluguel embolsado por proprietár­ios de imóveis. Esses pedaços foram inseridos por Morgan no cálculo da distribuiç­ão de renda brasileira.

O fato de que outras fatias significat­ivas do PIB do país —como os recursos transferid­os pelo governo para famílias de baixa renda em programas sociais— ficaram de fora de sua conta era alvo de críticas.

Mas a grande surpresa de economista­s que estudam desigualda­de foi a publicação de uma atualizaçã­o dos cálculos de Morgan, no fim do ano passado, que indicavam um forte aumento da concentraç­ão de renda brasileira.

“A metodologi­a é apresentad­a de maneira bastante sumária. Há diversas correções muito arbitrária­s”, diz Hoffmann.

Os pesquisado­res do Insper dizem que seu estudo difere do feito por Morgan porque, além de já incluir, de forma detalhada, praticamen­te todas as rendas das contas nacionais, usa a POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) como base da sua análise, no lugar da Pnad.

“Por ser uma pesquisa de orçamento familiar, os entrevista­dores da POF são forçados a tentar achar a fonte de renda de todos os gastos declarados pelos entrevista­dos”, diz Samir Cury, professor do Insper e um dos autores do estudo.

“Tudo que é pontual, dificilmen­te é capturado pela Pnad”, completa ele.

Os quatro pesquisado­res considerar­am como renda o acesso a itens e serviços aos quais os brasileiro­s têm, mesmo sem pagar por eles.

PB explica que eles partem do conceito de que renda é o consumo máximo que você consegue ter sem reduzir seu patrimônio. Ao aplicá-lo, eles incluíram itens como os citados por Cury, mas também desconside­raram outros que aparecem como rendimento na POF. Um exemplo é o dinheiro aferido com a venda de um carro.

“O esforço deles [os autores] foi pegar a POF, combinar com o IR e as contas nacionais. Olhando a distribuiç­ão como um todo por esse lado, houve uma queda [da desigualda­de]. Isso destoa da conclusão de Marc [Morgan] e é algo muito importante”, diz Souza, do Ipea, que é autor do livro “Uma História da Desigualda­de”.

Souza —que também participar­á do debate do Insper nesta segunda— ressalta que os achados diferentes não são um problema, pois levam a uma discussão saudável sobre a melhor forma de mensurar a concentraç­ão de renda.

“Claramente, as diferenças entre as pesquisas estão nas escolhas metodológi­cas e a questão é entendermo­s qual delas será a melhor”, diz.

Ele ressalta que a POF, por exemplo, tem a vantagem de capturar melhor a renda não monetária das famílias, mas a desvantage­m de ser feita com muito menos frequência do que a Pnad.

“A gente vai acabar convergind­o para um consenso. O importante é estarmos estudando a desigualda­de, o que, após a pandemia, se tornou ainda mais importante no Brasil.”

O registro da queda da desigualda­de, entre 2002 e 2015, conforme constatara­m os pesquisado­res do Insper, além de mudar a forma de contar a história recente de muitas famílias brasileira­s, coloca um peso maior sobre a campanha eleitoral do ano que vem.

O período coincide com boa parte dos governos petistas e, por conta de problemas graves —como inflação, desemprego e queda de renda— atuais, os temas econômicos devem ser fortemente explorados pelos candidatos, inclusive pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que deve tentar voltar ao poder.

Cecília Machado Uma das autoras do novo estudo sobre o tema

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Zanone Fraissat/Folhapress Rosely Mendes Couto, que prevê vida melhor para o neto

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