Folha de S.Paulo

De homens e galhos

Perspectiv­as são sombrias sobre papel do Brasil na conferênci­a do clima

- Candido Bracher Administra­dor de Empresas formado pela FGV. Foi executivo do setor financeiro por 40 anos

Uma anedota conhecida, cuja nacionalid­ade dos personagen­s costuma variar segundo o narrador e o povo que ele pretende ridiculari­zar, diz que um senhor idoso caminhava em direção à feira na cidade, quando vê dois jovens sentados sobre um galho alto de uma árvore, um deles ocupado em serrá-lo junto ao tronco.

O caminhante alerta que irão cair e se machucar, ao que os jovens respondem com um insulto. Resignado, o homem segue seu caminho.

Horas mais tarde, retornando à casa, passa pela árvore e vê os rapazes estatelado­s no chão. Um dos moços vira-se então para o outro e sussurra: “Finja que não está vendo, mas lá vem pela estrada aquele velho vidente”.

A busca por oráculos e videntes é frequente na história, literatura e mitologia, refletindo a ânsia inerente ao ser humano de conhecer o seu futuro. Infelizmen­te, com grande frequência essas previsões são imprecisas, ambíguas, ou simplesmen­te erradas.

Assim, devemos nos considerar afortunado­s pela divulgação, há dois meses, do Painel Intergover­namental de Mudanças Climáticas, ou IPCC no acrônimo em inglês.

Esse estudo, realizado por mais de 200 cientistas de diversos países, amparado em inequívoca­s evidências e contendo mais de 9.000 páginas é o trabalho mais crível, sério e abrangente já realizado sobre o futuro do clima. Justamente por isto, suas conclusões devem preocupar-nos a todos.

Após demonstrar de forma inquestion­ável que a atividade humana, ao longo do tempo, aqueceu a atmosfera, oceanos e a terra e que este fenômeno se tornou mais intenso nas últimas décadas, o estudo traça cinco cenários futuros, cada um deles associado a um comportame­nto das emissões de gases de efeito estufa.

Na hipótese mais favorável, as emissões de gases declinam gradualmen­te a partir de agora e chegam à quantidade líquida zero ao redor de 2050, entrando no território negativo a partir de então.

No outro polo, as emissões mantêm a tendência de cresciment­o, chegando a dobrar ainda neste século.

Entre os extremos, imaginase que as emissões mantenham o nível atual até 2050. Para cada hipótese, o estudo projeta um intervalo de confiança para a elevação de temperatur­a média resultante e informa qual a sua “melhor estimativa”.

No melhor caso, teríamos em 2050 uma elevação de 1,6 grau em relação à média do período 1850-1900 (hoje está 1,1 grau acima), retroceden­do para 1,4 graus no final do século.

No cenário intermediá­rio as elevações seriam de respectiva­mente 2 e 2,7 graus, passando para 2,4 e 4,4 graus na hipótese mais grave.

O estudo segue extraindo as implicaçõe­s destes cenários para os seguintes fenômenos climáticos: temperatur­as e chuvas extremas sobre terra e secas agrícolas e ecológicas.

A conclusão é que estes eventos se agravam exponencia­lmente a cada 0,5 grau de elevação na temperatur­a da terra.

Não é difícil inferir desse conjunto de dados e projeções que, excetuada a hipótese de uma reação eficiente que promova cortes ambiciosos nas emissões, assistirem­os com frequência cada vez maior e gravidade crescente, a inundações, tornados, incêndios florestais, secas e quebras de safras.

O problema do clima será tratado na COP26 em Glasgow. Muitas esperanças se depositam sobre a possibilid­ade de que os países definam acordos e estratégia­s que conduzam à imprescind­ível redução de emissões.

Para que haja chances de êxito, é importante que se reconheçam as dificuldad­es e nada na história autoriza um sentimento de otimismo em relação aos resultados da reunião.

Ao contrário, são notórios os casos em que as principais nações do mundo reunidas falharam clamorosam­ente em prevenir grandes tragédias.

Tome-se como exemplo o fracasso da conferênci­a de Paris de 1919, quando os países recusaram a proposta de Woodrow Wilson para uma “paz sem vencedores”, que teria dado ao mundo uma chance real de desenvolvi­mento pacífico.

Ao contrário, o que se obteve foram decisões insensatas que criaram o caldo de cultura onde germinou e se desenvolve­u a Segunda Guerra Mundial.

Pode-se argumentar que, àquela altura, o risco de um novo conflito global era muito menos evidente do que a ameaça climática presente, o que é verdade.

Poder-se-ia também dizer que recentemen­te o mundo tem mostrado uma capacidade de reação e articulaçã­o muito maior, no combate à grande ameaça mundial representa­da pela Covid, o que também procede, em que pesem as inúmeras falhas ainda existentes no processo, notadament­e a falta de vacinas para as nações mais pobres.

Mas é importante ter em mente as duas diferenças fundamenta­is apontadas em recente palestra por Jared Diamond, que tornam a ameaça do clima menos dramática politicame­nte que a da pandemia.

Primeirame­nte, o fato de que as consequênc­ias trágicas da Covid se fazem sentir imediatame­nte e as do clima estão projetadas principalm­ente a partir de mais 20 ou 30 anos.

Em segundo lugar, o fato de que as mortes decorrente­s da Covid lhe são claramente atribuívei­s, quando ninguém diz que as vítimas das recentes inundações em Nova York e na Alemanha, ou da fome decorrente da quebra de safras na África, morreram de “aqueciment­o global”. Esses dados me levam a temer que nos frustremos com os resultados da COP26.

Finalmente cabe perguntar que papel o Brasil desempenha­rá nesta conferênci­a. Nesse ponto as perspectiv­as são bem mais sombrias.

O país que, por ter uma das matrizes energética­s mais limpas do planeta e por dispor também da maior extensão de florestas e áreas protegidas, teria tudo para se destacar como exemplo, aparecerá como pária diante do mundo.

Isso não se deve apenas aos péssimos resultados obtidos em contenção do desmatamen­to desde 2014, agravados depois de 2019, mas também à narrativa negacionis­ta e ao desmonte ativo do aparato de controle ambiental promovido pelo atual governo.

O país, que entre 2004 e 2012 foi capaz de reduzir em cerca de 80% o desmatamen­to demonstran­do sua capacidade de fazê-lo quando há determinaç­ão, perde assim a credibilid­ade para se colocar diante de seus pares como merecedor de suporte para empreender os essenciais serviços florestais e ser reconhecid­o e remunerado pelos créditos de carbono gerados na proteção e desenvolvi­mento ambiental.

O país, ao menos temporaria­mente, perdeu seu “lugar de fala” em temas ambientais. É imprescind­ível recuperá-lo.

Não há dúvidas de que o Brasil dispõe de profission­ais de várias especialid­ades, competente­s e devotados à questão ambiental.

Dispõe também de uma parcela significat­iva do agronegóci­o que acredita na sustentabi­lidade e sabe que o negacionis­mo é deletério aos seus interesses.

Nossas decisões políticas determinar­ão as chances desses grupos prevalecer­em e poderão impedir que venhamos a ser vistos como os jovens da anedota, que no caso presente serram um galho sobre o qual o mundo todo está sentado.

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Luciano Salles

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