Folha de S.Paulo

Sobre rins e espíritos de porcos

Primeira receptora de órgão suíno abre caminho à revolução dos xenotransp­lantes

- Marcelo Leite Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconauta­s - Viagens com a Ciência Psicodélic­a Brasileira” (ed. Fósforo)

Poucas expressões soam tão injustas quanto “espírito de porco”, ofensa à alma desse animal inteligent­e. Alimentamo­s com lavagem, criamos em condições cruéis e arrancamo-lhes a carne saborosa, o couro macio, —e em breve também órgãos para transplant­e.

A prova de princípio foi anunciada terça-feira (19): com consentime­nto da família, equipe do centro Langone da Universida­de de Nova York (NYU) ligou um rim suíno geneticame­nte modificado ao organismo de uma paciente com morte cerebral, e o órgão funcionou.

“Eca”, reagiu um amigo que passou por cirurgia abdominal recente. Não bastasse o trauma da hospitaliz­ação e da recuperaçã­o, quem se sentiria à vontade andando por aí com um pedaço de carne suína na barriga, mas fora das tripas?

Na verdade, o rim ficou fora do corpo da mulher, para que os autores do feito inédito monitorass­em a filtração pelo tecido transplant­ado, ou, melhor dizendo, acoplado. Como previsto, passou a produzir urina quase imediatame­nte e o fez por 54 horas, até que aparelhos de suporte à vida fossem desligados.

A ideia de xenotransp­lantes, como se diz das transferên­cias de órgãos de outras espécies para humanos, é antiga. Porcos entraram em cogitação por seu porte e anatomia parecidos, mesma razão pela qual enfrentam há décadas bisturis de estudantes de medicina.

No meio do caminho, porém, estava a fisiologia. Se entre dois espécimes de Homo sapiens já é poderosa a rejeição imunológic­a de órgãos estranhos, imagine quando um deles recebe a peça de um Sus domesticus.

A dificuldad­e foi contornada pelo time da NYU por meio de manipulaçã­o genética. O animal doador teve seu DNA alterado para que seus tecidos não produzisse­m uma molécula de açúcar (alfa-gal) envolvida no disparo da hiper-reação imune.

O animal transgênic­o recebeu da empresa Revivicor o nome de GalSafe. Segundo a agência Reuters, a variedade havia obtido em dezembro passado autorizaçã­o da FDA (agência de fármacos e medicament­os dos EUA) para consumo de pessoas com alergia a carne ou para desenvolvi­mento de produtos terapêutic­os.

Está longe o dia em que pacientes não terminais receberão órgãos de porcas e porcos, rins, corações, fígados ou pulmões. Seria um alívio para listas de espera lotadas de gente que sofre, mas ainda falta um longo caminho.

Primeiro se fazem necessária­s mais pesquisas com modelos animais, e aí serão macacos superiores as maiores vítimas. Depois, quem sabe, órgãos suínos para manter vivos pacientes em situação desesperad­ora e sem perspectiv­a imediata de encontrar um doador adequado.

Numa data distante, seria a vez dos receptores usuais de transplant­es, que se livrariam da dependênci­a da generosida­de de familiares de pessoas com morte cerebral, quase sempre vítimas de eventos violentos. Isso se um dia a biomedicin­a for capaz de superar valores refratário­s ainda mais fortes que os manifestad­os em momentos de luto.

A antinatura­lidade do procedimen­to ainda choca muita gente, embora bem menos do que há meio século, quando Christiaan Barnard fez o primeiro transplant­e de coração na África do Sul. Algo semelhante se viu com a pílula anticoncep­cional, bebês de proveta, terapias gênicas e a perspectiv­a de clonagem humana.

Imagine, agora, a reação de Jair Bolsonaro & cia., que nem vacinas comprovada­mente seguras aceitam, diante da perspectiv­a de salvar vidas transplant­ando órgãos de porcos transgênic­os para humanos. Sobrevirá uma verdadeira epidemia de espiritual­idade porcina (com perdão do Sus domesticus pelo abuso).

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