Folha de S.Paulo

Casamento às cegas (mas às cegas mesmo)

- Chico Felitti folha.com/nossoestra­nhoamor

Leticia Cardoso nunca viu Casamento às Cegas. Mas poderia ter feito parte do elenco do reality show da Netflix, em que desconheci­dos são colocados em uma casa e precisam escolher um parceiro só pela voz, em conversas que duram horas.

Aos 74 anos, Leticia desconfia saber “mais ou menos” o que seja um serviço de streaming, por mais que não assine nenhum. “Assisto à Ana Maria Braga e, de vez em quando, à novela da Record, se for da Bíblia.” Mas, seis décadas atrás, ela protagoniz­ou um casamento às cegas de verdade, que não foi television­ado. Leticia se casou criança com um homem que nunca tinha visto, e cuja voz era um mistério tão grande quanto o mar, que ela só foi conhecer já adulta.

Em 1960, ela era a filha mais velha de agricultor­es em Prudentópo­lis, no interior do Paraná. Aprendeu a ler e a escrever e até sonhava com um magistério, a única carreira considerad­a digna para uma mulher na sua cidade. Mas, aos 13 anos de idade, de repente ela não estava mais na sua cidade. Em uma manhã de terça, foi levada pelos pais até Ponta Grossa, a quase cem quilômetro­s de distância, que consumiram horas e horas de transporte público, se sua memória bem lembra.

Quando chegaram ao centro ponta-grossense, havia uma outra família esperando na porta de um armazém de secos e molhados. Uma mulher gorda, um homem fino e um jovem que ela nunca havia visto. Um homem de 18 anos e de nome Marcos Cardoso que, a partir daquele dia, ela teria de chamar de seu marido. E ela não se lembra de uma caracterís­tica física dele no dia em que se conheceram --o mesmo dia em que se casaram, honrando um acordo feito pelos pais de ambos os lados.

“E foi assim. Meus pais me deixaram e a gente se mudou para uma casa no quintal da casa dos pais dele.” Quando fecharam a porta da casa do novo casal, que não teve festa ou lua de mel, um silêncio cobriu os dois. E durou a primeira noite inteira. No dia seguinte, ela teve de ir até a casa vizinha para perguntar à sogra o que tinha de fazer. Ouviu que tomaria café ali, mas que a partir do dia seguinte ela teria de preparar as refeições do marido e cuidar da casa, que já estava ali, e dos filhos, que os parentes esperavam que estivessem ali o quanto antes.

“Eu fui de criança a esposa assim”, e estala o dedo. Mas ela olhou para o lado na mesa do jantar e viu algo no rosto de Marcos. “Ele também era uma criança. Uma criança que trabalhava com o pai desde sempre, mas uma criança.” E os dois começaram um diálogo com um “você gosta de frango ao molho pardo?”, que ela perguntou por ser um dos únicos pratos que sabia fazer. Ele respondeu que, sim, gostava.

“O Marcos era gentil. Ele foi gentil comigo.” E, aos poucos, o desconheci­do foi ganhando corpo físico em sua mente, como uma terra nova que é mapeada, rio por rio. “No começo, ele não era bonito. Não era feio. Não era nada. Era só um homem que eu não conhecia.” Ao fim do primeiro ano, já sabiam que tinham em comum o senso de humor e o gosto por música instrument­al, que chamavam de “música sem letra”.

“Eu cresci com ele. A gente fazia tudo junto. Todo dia, ele me trazia um saco de balas quando voltava do trabalho.” Nunca falhou, mesmo quando ela deixou de comer os doces, primeiro por dieta e depois pelo exame alterado de glicemia. Ficaram quase seis décadas juntos. “A gente construiu a vida juntos. E isso é mais difícil do que qualquer outro trabalho que eu já tive”, diz ela, que costurou para fora e fez bolos.

Letícia diz que seu casamento foi uma “coisa dos tempos”. “Era assim que acontecia com muita gente. E que aconteceu comigo.” Prefere não ponderar como sua vida teria sido diferente se não fosse por aquela manhã de terça-feira. Mas jamais deixaria que sua única filha trilhasse um caminho como o dela. “Ela escolheu. Escolheu o que ia estudar, escolheu com quem ia ficar.” Na verdade, Joana Cardoso optou por não se casar. Hoje, ela e a filha moram juntas em Curitiba. Perderam Marcos para um câncer em 2018, mas ela ainda convive diariament­e com o peso da sua ausência —em si, uma presença.

Os dois falavam de tudo. Menos de como se conheceram. Muito antes de perder o marido que não havia escolhido, Leticia se deu conta de que estava apaixonada por aquele homem. Depois, viveu por décadas com ele um sentimento mais morno e confortáve­l. Uma segurança de saber que tinha alguém. “Ele foi o amor da minha vida.”

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