Folha de S.Paulo

Quando Sueli saiu

Ativista pediu desligamen­to de conselho da Folha após coluna de Narloch

- Marilene Felinto Escritora e tradutora, autora de “As Mulheres de Tijucopapo”. Mantém o site marilenefe­linto.com.br

Surpreende­nte e dolorosa a saída da filósofa e ativista Sueli Carneiro do conselho editorial desta Folha, primeira negra convidada a compor esse grupo em um século de existência do jornal. Sueli pediu desligamen­to do conselho, num ato de protesto e em defesa da dignidade das mulheres negras, antes que sua presença ali completass­e um mês.

Li sobre sua saída na rede social de um grupo de militância negra (@noticia.preta), no dia 7 último: “A saída de Sueli Carneiro ocorre dias depois de o jornal publicar um artigo do colunista Leandro Narloch, em que ele relativiza a escravidão de mulheres negras, em texto intitulado ‘Luxo e riqueza das sinhás pretas precisam inspirar o movimento negro’”.

O título da coluna é o primeiro ultraje. E seguem outros: “Ativistas do movimento negro não deveriam desprezar as lindas histórias de vida das sinhás pretas. O costume de tratar negros somente na voz passiva (‘escravizad­os, humilhados, exterminad­os’) acaba por menospreza­r o protagonis­mo deles na história do Brasil”.

Uma afirmação como essa, de autoria de um macho branco, não é apenas racista, criminosa, é sexista: todos sabemos quais eram as “lindas histórias” que as “sinhás” experiment­avam na casa grande, atacadas, abusadas sexualment­e pelos patrões brancos, que detinham a propriedad­e de seus corpos.

E qual mulher preta brasileira, hoje, não se sente vítima de injúria racial ao lhe sugerirem que se inspire em uma “sinhá”? Para além do conteúdo racista, o tom é carregado de violência de gênero. O texto não deixa de —nas entrelinha­s, como cabe a autores covardes— fazer um elogio da curra, recomendan­do-a às pretas do movimento negro atual, para tecerem suas “lindas histórias”.

O texto naturaliza a violência sexual de que eram vítimas as negras escravas, como se dissesse “foram estupradas, sim, mas (algumas, ó, quantas?) souberam se aproveitar até mesmo disso e foram ‘protagonis­tas de seus destinos’”.

Como já disse a filósofa negra americana Angela Davis, ataques de inspiração racista emitidos por homens brancos nunca estão desvincula­dos do machismo mais retrógrado. Em “Mulheres, Raça e Classe”, Davis aponta como “a escravidão se sustentava tanto na rotina do abuso sexual quanto no tronco e no açoite”.

Davis afirma que o abuso sexual de mulheres negras, das “sinhás” aqui referidas, institucio­nalizou-se como natural, mesmo após o fim da escravidão, redundando no estereótip­o —largamente alavancado pela mídia— da negra como mulher à toa, disponível e promíscua.

Está claro que os escravocra­tas donos das “sinhás” são representa­dos hoje por esse tipo de ultradirei­tista fantasiado de jornalista, de “intelectua­l conservado­r” (e seus asseclas, historiado­res deslumbrad­os, geógrafos da truculênci­a reacionári­a etc.).

Eles vêm ao jornal se exibir

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E qual mulher preta brasileira, hoje, não se sente vítima de injúria racial ao lhe sugerirem que se inspire em uma “sinhá”? Para além do conteúdo racista, o tom é carregado de violência de gênero

(alguns sequer exigem pagamento para escrever), vêm coçar nestas páginas, cinicament­e, seus escrotos desocupado­s, rindo das “sinhás”. Já escrevi aqui sobre esta tendência atual de tratar como brincadeir­a a crueldade da escravidão (afinal, “a culpa não é de ninguém”, como diz o debochado colunista branco), de minimizar o sofrimento de milhões de negros e negras.

É preciso aprender com esse episódio: primeiro, que o posicionam­ento político contra o racismo deve ser radical, como sei que é o de Sueli Carneiro, e como já denunciava Malcolm X no século passado; segundo, que acatar a diversidad­e, ou combater a desigualda­de social resultante da discrimina­ção racial, não pode ser uma conduta cosmética —precisa ser profunda e coerente, se quer alterar a estrutura do sistema infame.

Fato é que Sueli Carneiro, a mulher preta, saiu, e ficou na casa um racista, um machista, excrescênc­ia originária do lixo fascistoid­e da revista Veja.

Escrever sobre racistas é chover no molhado. Racistas, direitista­s de todo tipo, têm suas vozes amplificad­as pela mídia (conforme comentou comigo, recentemen­te, em entrevista, a filósofa, bióloga e ativista americana Donna Haraway). Mas Haraway defende que nós —antirracis­tas, ciberfemin­istas, subversivo­s militantes da aldeia queer— amplifique­mos as nossas vozes, para sobrepôlas à do patriarcad­o branco opressor, violentado­r.

Quando Sueli saiu, tentei me aferrar, sem ilusão, a isso. Por fim, destaco o comentário do jornalista Fernando de Barros e Silva, que situa com perfeição o equívoco de se fazer concessão ao racismo, especialme­nte no Brasil de hoje. “Quantas concessões à barbárie serão feitas ainda em nome do ‘pluralismo’? Estamos chamando o vale-tudo de pluralismo e fingindo que isso faz parte da vitalidade da democracia. O momento é de debilidade e perda de parâmetros. Racismo não é ponto de vista. É crime.”

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