Folha de S.Paulo

Rir de tudo e rir de nada

A mesma coisa, dita num discurso sério ou num não sério, tem valores diferentes

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

A viagem já vai longa quando Jacques, o fatalista, confessa ao amo a sua ambição: rir de tudo. Ele acha que assim se livraria de preocupaçõ­es e de necessidad­es, conseguiri­a se tornar perfeito senhor de si mesmo e se sentiria tão bem com a cabeça encostada à esquina da rua como num bom travesseir­o. Em sentido contrário, são Basílio de Cesareia disse que não era permitido rir de nada.

Estou convencido de duas coisas: primeiro, que a razão pela qual são Basílio propõe que não seja possível rir de nada é precisamen­te a mesma razão pela qual Jacques deseja rir de tudo; segundo, que, no que toca ao riso, só existem essas duas posições radicais. Não creio que haja meio-termo. Ou defendemos que é possível rir de tudo ou defendemos que não é possível rir de nada.

A partir do momento em que a gente abre uma exceção (“podemos rir de tudo exceto disto” ou “não podemos rir de nada exceto daquilo”), deixa de ser possível sustentar a posição. O mesmo argumento que valida uma exceção sanciona todas as outras.

Por exemplo: podemos rir de tudo exceto do sagrado. Que sagrado? Deus? Só um deus ou todos os deuses? Não podemos rir de Poseidon? E aquelas pessoas que não são crentes mas para as quais outras coisas são sagradas —coisas tão diferentes como a família, o país, o vôlei de praia?

Um dos principais motivos desta discórdia é o fato de muita gente ter uma ideia errada do riso. Por exemplo, há muita gente convencida de que rir é o contrário de chorar. Não é, não. Rir e chorar são vizinhos, talvez mesmo parentes. Por vezes até ocorrem ao mesmo tempo. Ambos funcionam como a válvula da panela de pressão.

O contrário de rir é não rir. Estar sério. Acumular tensão. É bastante importante entender isso. A mesma coisa, dita num discurso sério ou num discurso não sério, tem valores diferentes.

Assim como as coisas que se dizem na cama. Não é possível citar o que foi dito na cama como se tivesse sido dito no salão. O riso pode ser agressivo, claro. Mas, mesmo quando é, trata-se de uma agressivid­ade especial —o que é frequentem­ente esquecido.

Até Samuel Butler, autor de sátiras, relacionou o riso com a agressivid­ade pura, assinaland­o que não é possível rir sem mostrar os dentes. É falso, no entanto. Os bebês conseguem fazê-lo.

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Luiza Pannunzio

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