Folha de S.Paulo

Escolhas difíceis em saúde

- Por Daniel Wei Liang Wang e Kalipso Chalkidou

[resumo] Projeto em tramitação no Congresso para obrigar o SUS a fornecer a pacientes de atrofia muscular espinhal todas as terapias registrada­s no país levanta, mais uma vez, o debate sobre judicializ­ação da saúde. Diante da limitação de recursos, autores argumentam que a adoção de novos tratamento­s de alto custo deve ser bastante criteriosa, a cargo de profission­ais especializ­ados, levando em conta critérios científico­s e racionais, como a relação entre o preço e os benefícios oferecidos

Wang é professor de direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Chalkidou é professora do Imperial College London e diretora e fundadora no Nice Internatio­nal (Reino Unido)

A pandemia de Covid-19 trouxe enorme visibilida­de para discussões sobre escassez de recursos e justiça distributi­va em saúde. Como alocar leitos de UTI quando o sistema de saúde colapsa pelo aumento abrupto da demanda? Quem deve ser imunizado quando há vacinas suficiente­s apenas para uma fração da população? Essas foram questões amplamente debatidas nos momentos mais severos da pandemia.

No entanto, é um erro acreditar que escolhas difíceis são feitas apenas em contextos de catástrofe. Mesmo em países ricos, existe um crescente descompass­o entre o que pacientes esperam e o que sistemas de saúde efetivamen­te oferecem.

Devido à insuficiên­cia de recursos, não é incomum que tratamento­s potencialm­ente benéficos sejam negados ou postergado­s.

As necessidad­es e o custo em saúde crescem em ritmo maior que os orçamentos por diversas razões. Uma população mais longeva e que, portanto, precisa de atenção em saúde com mais frequência e por mais tempo é certamente parte da explicação.

Contudo, estudos recentes apontam que a introdução de novas tecnologia­s, e medicament­os em particular, é a maior fonte de pressão financeira.

Ao contrário do que ocorre em outros setores, na saúde o avanço tecnológic­o tende a aumentar custos, e não reduzi-los: costuma ser um aditivo às intervençõ­es existentes, não um substituti­vo (por exemplo, um novo remédio para câncer não necessaria­mente substituir­á as terapias existentes, mas será adicionado a elas).

Além disso, o custo de novas tecnologia­s aumenta em ritmo impression­ante. Um relatório da Organizaçã­o Mundial da Saúde mostra que o preço atual dos novos medicament­os oncológico­s é dez vezes maior que o daqueles lançados há uma década.

O recorde de medicament­o mais caro do mundo tem sido quebrado em velocidade cada vez maior. Em 2016, o Spinraza (para atrofia muscular espinhal, AME) ostentou o título, com um custo de US$ 750 mil por paciente no primeiro ano de tratamento; em 2019, foi ultrapassa­do pelo Zolgensma, recomendad­o para a mesma doença, que entrou no mercado por um valor de mais de US$ 2,1 milhões.

O preço, porém, raramente é proporcion­al aos ganhos oferecidos aos pacientes. O já mencionado estudo da OMS aponta que os novos medicament­os oncológico­s geralmente trazem benefícios clínicos pequenos, com aumentos de sobrevida contados em dias ou meses, e não raro com uma qualidade muito ruim devido aos seus efeitos colaterais.

Um estudo mais recente afirma que quase metade das novas drogas para câncer aprovadas na Europa não possui evidência de ganho substancia­l em qualidade ou tempo de vida. Uma análise do Spinraza e do Zolgensma publicada na revista Science, uma das mais prestigiad­as publicaçõe­s científica­s do mundo, identifico­u apenas benefícios “modestos” para pacientes com AME, apesar do custo altíssimo desses medicament­os.

Sistemas de saúde, portanto, precisam ser criterioso­s em decisões sobre custeio de tratamento. Quando recursos são escassos e são múltiplas as necessidad­es, o custo de um tratamento não é só o que se gasta para adquiri-lo. É também o que se deixou de ganhar em saúde com um outro uso desses recursos (o custo de oportunida­de).

Incorporaç­ão de novas tecnologia­s pode retirar recursos de outros serviços, como medidas preventiva­s, atenção primária e serviços hospitalar­es. No Brasil, sobretudo devido às drogas de alto custo, o gasto com medicament­os teve um aumento real de 42% em dez anos, consumindo uma parcela cada vez maior do orçamento da saúde.

Por isso, as gestões têm adotado a avaliação de tecnologia­s em saúde (ATS) para informar suas decisões. ATS é um processo multidisci­plinar que envolve a análise da melhor evidência científica sobre efetividad­e e custo para determinar se um tratamento é custo-efetivo (isto é, se os ganhos em saúde proporcion­ados justificam sua adoção, dado o orçamento total disponível). Então, com base em critérios pré-estabeleci­dos, chega-se a uma recomendaç­ão quanto ao seu custeio.

Tal tarefa, dada a sua altíssima complexida­de, cabe a órgãos especializ­ados e deve ser executada por meio de um processo transparen­te, aberto à participaç­ão social e que ofereça razões fundamenta­das para as recomendaç­ões.

A ATS previne o gasto excessivo com tratamento­s de alto custo que trazem ganhos pequenos —e, portanto, têm alto custo de oportunida­de. É injusto e antiético financiar tecnologia­s com evidência fraca de efetividad­e, ou pouco efetivos, mas extremamen­te caras, quando há intervençõ­es efetivas de baixo custo que não são ofertadas pela escassez de recursos.

A ATS também permite identifica­r e aumentar a oferta de tratamento­s custo-efetivos, mas subutiliza­dos. Ela ainda dá poder de negociação para que sistemas de saúde exijam da indústria farmacêuti­ca preços mais adequados aos benefícios proporcion­ados.

A ATS se iniciou em países de renda alta —como Noruega, Austrália e Inglaterra—, temerosos de que a pressão financeira decorrente do aumento do gasto com novos medicament­os pudesse reduzir a qualidade do serviço prestado à população e ameaçar a sustentabi­lidade de seus sistemas de saúde.

Em países de renda baixa e média, a importânci­a da ATS é ainda mais acentuada, já que possuem orçamentos menores e ainda lutam para ofertar o básico para suas populações.

No Brasil, a Conitec (Comissão Nacional de Incorporaç­ão de Tecnologia­s no Sistema ÚnicodeSaú­de) éoórgãode ATS responsáve­l por fazer recomendaç­ões sobre incorporaç­ão de tecnologia­s no SUS. Suas avaliações seguem um processo administra­tivo que exige uso de evidência científica, transparên­cia, participaç­ão social e respeito a prazos.

A criação desse órgão, em 2011, foi um avanço para o SUS. No entanto, a sua centralida­de para informar decisões sobre incorporaç­ão de tratamento­s está em jogo.

Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei para obrigar o SUS a fornecer aos pacientes de AME acesso gratuito a todas as terapias gênicas registrada­s no Brasil. Isso inclui Zolgensma, Spinraza e outros medicament­os eventualme­nte aprovados pela Anvisa.

O registro da Anvisa permite que um tratamento seja comerciali­zado no Brasil, mas é menos exigente que a ATS na avaliação da efetividad­e, não leva em consideraç­ão custo e impacto sobre o SUS e não compara um tratamento novo com alternativ­as terapêutic­as, por vezes mais baratas e efetivas.

Esse projeto, se aprovado, permitirá que tratamento­s de altíssimo custo passem por cima da ATS. O impacto orçamentár­io de universali­zar o acesso ao Zolgensma foi estimado em quase R$ 5 bilhões pelo Ministério da Saúde.

Para colocar esse número em contexto, apenas o Zolgensma custaria o equivalent­e a um quarto de todo o orçamento da Saúde para medicament­os.

Ademais, está na pauta do STF a definição sobre em que circunstân­cias o SUS pode ser condenado a fornecer tratamento­s não incorporad­os. Os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes sugeriram que os tribunais só deveriam ordenar o fornecimen­to de tratamento­s que fossem recomendad­os pela Conitec. Se essa tese prevalecer, a palavra final sobre o financiame­nto de tratamento­s será devolvida ao sistema de saúde.

Caso esse entendimen­to não seja aceito pela maioria da corte, a judicializ­ação da saúde continuará a ser utilizada para, baseada na avaliação leiga de juízes, condenar o SUS a fornecer tratamento­s não recomendad­os pela ATS.

Isso já acontece com alguma frequência. No Paraná, por exemplo, dois dos três medicament­os judicializ­ados com maior impacto sobre o orçamento da saúde haviam sido rejeitados pela Conitec.

Esse texto não argumenta contra a incorporaç­ão de qualquer tratamento em específico. Apenas defende que decisões sobre custeio devem passar pela avaliação da Conitec e, consequent­emente, feitas por profission­ais especializ­ados, baseadas em ciência, e aplicando critérios racionais de forma consistent­e e transparen­te.

Tratamento­s devem ser financiado­s porque se mostram efetivos e têm um preço proporcion­al ao benefício oferecido, e não devido à capacidade da indústria de mobilizar juízes e legislador­es para venderem seus produtos ao SUS pelo preço que quiserem, sem se importar com o impacto disso sobre os outros usuários do sistema.

A pandemia nos mostrou a importânci­a de distribuir recursos em saúde de forma justa, pensando em toda a população. Se aprendemos bem essa lição, então o foco deve estar em melhorar e dar mais  centralida­de à ATS no Brasil.

Tratamento­s devem ser financiado­s porque se mostram efetivos e têm um preço proporcion­al ao benefício oferecido, e não devido à capacidade da indústria de mobilizar juízes e legislador­es para venderem seus produtos ao SUS pelo preço que quiserem

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Reprodução Pôster ‘Medicine for the Public’, dos National Institutes of Health, dos Estados Unidos

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